
Privacidade na internet/Imagem/Reprodução
Existe uma zona nebulosa no debate sobre temas que envolvem o uso da internet nos quesitos relativos à privacidade dos usuários e do tratamento dos dados de bilhões de pessoas em poder das chamadas big techs. Intencionalmente, as discussões acerca do papel das corporações responsáveis pelas “redes sociais”, pela nossa vida virtual e a temática da liberdade de expressão se misturam aos interesses de grupos de pressão patrocinados por estas e são, em geral, marcadas pelo seu caráter político, econômico e ideológico. A ideia é não haver debate e empurrar o assunto para longe, de preferência para as “bordas da terra plana”.
Qualquer pessoa menos ingênua sabe que nada é de graça na internet. Também é consenso que o principal “produto” em poder das gigantes do Vale do Silício é o nome (e tudo a ele vinculado) de quem é ativo nas redes, usa serviços de e-mail, aplicativos, softwares “gratuitos” e outros produtos online. As empresas de tecnologia vivem de um grande negócio que começa nos primeiros cliques que damos na rede, ganha corpo com a publicidade vendida em seus diferentes mecanismos de distribuição de conteúdo e vira um mercado multibilionário quando se cruza com interesses comerciais, de estados e instituições de poder mundo afora.
Os inúmeros tentáculos das poderosas empresas online inspiraram figuras como o cientista Jaron Lanier, um dos criadores de mecanismos de inteligência artificial e das redes, a romper há algum tempo o silêncio sobre a manipulação feita a partir do uso de algoritmos e a vigilância exercida pelas corporações dos nossos passos no universo virtual. As preocupações e as pregações de Lanier para que abandonemos “imediatamente” as redes sociais estão em texto que republiquei aqui, a partir de artigo escrito por mim para a plataforma Substack (leia aqui). A coisa vai muito além das questões levantadas por ele em livros, palestras e debates.
No Brasil, dois casos recentes remetem a essa discussão. O primeiro processo, movido pela professora mineira Aliandra Cleide Vieira contra o Google, alimenta a discussão que chegou ao STF numa ação que mira as previsões legais do Marco Civil da Internet no tocante à privacidade (veja reportagem aqui, do portal UOL). O outro caso é da dona de casa Lourdes Pavioto Corrêa, de São Paulo, que teve um perfil falso mantido pelo Facebook e contra o qual ela brigou para que a plataforma tirasse do ar e respondesse por isso, inclusive com pagamento de indenização (veja aqui outra reportagem sobre o caso). O julgamento dos dois casos são os mais importantes sobre o tema no país e a decisão da Suprema Corte brasileira deverá balizar procedimentos das demais cortes judiciais em processos correlatos.
Um aspecto mais amplo dessa discussão envolve questões políticas que permeiam debates no mundo inteiro, notadamente a influência das corporações de tecnologia nos processos democráticos, os quais abrem espaço para propagação de discursos de ódio, xenofobia, racismo e outras distorções e ilegalidades flagrantes. Tudo acontecendo, há décadas, e as plataformas sempre alegando a “privacidade” e a ” liberdade de expressão” como mecanismos supostamente invioláveis dos seus usuários. Curiosamente, inúmeras ações judiciais dizem respeito ao modo como as pessoas se sentem invadidas em sua privacidade e em seus direitos pelas big techs. Trata-se de um jogo de empurra que envolve bilhões de dólares e manipulações de toda ordem.
Temos no Brasil, portanto, uma chance para discutir meios de responsabilização das plataformas, independente destas terem suas sedes majoritariamente nos EUA. As estratégias de alegar como princípios os pressupostos da legislação norte-americana, as “liberdades” e a “privacidade” são um truque para fugir do que realmente importa: elas são responsáveis, sim, pelo conteúdo que hospedam e pelo que seus usuários publicam. No mais, as agressivas “vendas” de espaços a grupos notadamente ligados ao racismo, ao armamentismo, ao extremismo político e militar e a poderosos grupos econômicos praticadas pelas empresas de tecnologia não podem ser vistas meramente como “negócio”. Por isso, também, devem responder.
O STF, talvez, dê o primeiro passo nessa linha. As empresas vão chiar, os extremistas vão berrar contra e os propagadores do ódio vão alegar seu direito a espalhar conteúdo falso e mentiroso. Parte do jogo de pressão. O que não dá é a sociedade ficar calada diante de tamanho poder e descalabro. Cabe ao Congresso, pressionado pela sociedade civil, regulamentar essa relação no plano legal. Mesmo esse Congresso horroroso e manietado por interesses econômicos e de diversas corporações.
Podemos ficar parados no tempo. Ou: vamos mudar ou ficar olhando esse teatro de horrores com nossas vidas, nossos dados e nossas reputações? A ver.
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