
Ainda na década de 1950, o escritor Ítalo Calvino passou dois anos recolhendo histórias populares pelas terras da Itália, o que resultou na obra Fábulas Italianas, encomendada por seu editor de então. Era um esforço de um grupo editorial daquele país para inserir a Itália no universo dominado pelas histórias fantásticas contadas e recontadas pelos Irmãos Grimm (da Alemanha) e Charles Perrault (da França)., dentre outros que se destacaram nesse universo.
Por trás dos famosos contadores de histórias que conhecemos existe toda uma discussão acadêmica e de pesquisas. A intenção é explicar o surgimento dos contos de fadas, já que suas origens remontam a tempos muito antigos, ainda na Idade Média, e tiveram suporte na tradição oral dos povos de diversos países europeus.
No Brasil, uma jornalista e pesquisadora chamada Karin Hueck publicou uma das obras de referência nessa área, que busca refazer esse caminho e facilitar a compreensão desse estilo encantador de literatura.
No livro O lado sombrio do contos de fadas (Abril, 2016), Hueck começa pela coleta de histórias – não do mesmo modo que fez Calvino quando foi recontar mais de 200 histórias da tradição oral italiana – mas por meio de uma pesquisa acadêmica de fôlego e que acabou tomando o formato de pesquisa jornalística.
Um dos principais pontos da pesquisa dela foi mostrar o “lado sombrio” dos contos de fadas, que na sua origem eram realmente histórias que assombravam os adultos. E por um motivo prosaico, mas que escondia uma intenção: era necessário fazer as pessoas dormirem cedo, pois o dia de trabalho começava cedo. E nada melhor do que deixar os adultos “com medo”.
Eram, portanto, histórias de terror, muitas das quais passamos a conhecer com outros elementos, ao longo do tempo e de acordo com os pesquisadores e contadores dessas histórias – os responsáveis pelas mudanças nessas recontagens. A maioria mudou as histórias, ora para agradar aos editores, ora para atrair mais leitores – com o surgimento dos impressos – ou também para tirar dos contos o seu lado sombrio.

Assim, no livro dela temos versões das mais “sangrentas” às mais diversas, cujo teor deixariam adultos e crianças sem dormir durante muito, se fossem contadas e levadas ao pé da letra. Além disso, sua pesquisa contemplou versões encontradas desses contos – de um mesmo personagem – que eram muito diferentes entre si. Uma hora, uma garota de um conto passava a ser um menino em outro, e vice-versa, além das mudanças de cenários, locais, tragédias ou até mesmo o final de cada uma delas. Essas mudanças, de certa forma, são comuns. Um exemplo disso é que temos recontagens clássicas da Chapeuzinho Vermelho, para citar um dos mais conhecidos, que terminam de um jeito pelas mãos dos Irmãos Grimm e de outro quando o contador era Charler Perrault.
Se entre esses dois eram assim, imagina o que não ocorria por conta da tradição “quem conta um conto aumenta um ponto”. De fato, parte-se desse princípio em todas as histórias populares, de tradição oral: nascem de um jeito, mudam conforme o tempo, os costumes, o ambiente e, inclusive, os interesses de grupos ou de classes. Ou de quem consegue dominar determinado lugar em dados períodos históricos. Mas isso já é assunto para outro texto.