A linguagem do poder e da enganação

O livro e seu criador, o professor emérito da USP José Teixeira Coelho Netto

O jornalista, crítico literário, linguista e pesquisador José Teixeira Coelho Netto, atualmente professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), publicou um livro instigante no início da década de 1990 que nunca perdeu a validade das teses ali expostas. Farei referência a trechos do que foi dissecado por ele para falar do vício brasileiro do uso da linguagem pelo poder – como mecanismo de enganação política – que não é de hoje, está cada vez pior e ganhou outra conformação com a internet.

Em Dicionário do Brasileiro de Bolso (1ª edição de 1991), as ironias começam no título e se espalham por verbetes e expressões usadas largamente pelos meios de comunicação, políticos, empresários, burocratas de um modo geral e pela chamada intelectualidade. Bom lembrar que o livro foi lançado no contexto do nascimento da internet no Brasil e, portanto, não abarcou o fenômeno das redes e seus desdobramentos como conhecemos.

Um exemplo clássico das inúmeras expressões usadas pelo poder para ludibriar os incautos, mostrou Coelho Netto na obra, era “Realinhamento de preços”, muito comum na boca de economistas, empresários e agentes do governo para maquiar a inflação, o aumento generalizado de preços e correlatos. Assim, o galope inflacionário que corroía salários e tirava o poder de compra das pessoas era fruto de um “realinhamento”. Era como se precisasse disso, como se faz com um carro.

Me arrisco a observar que isso piorou ainda mais, e que não mudou na essência. Outro dia, uma manchete do jornal Valor Econômico tratava de um golpe que o governo federal planeja dar no bolso de quem tem precatórios a receber – as famosas ações judiciais que o Estado perde e é obrigado a pagar. Pois bem: o veículo dizia que o Ministério da Economia calculava os benefícios (para o governo) da “rolagem dos precatórios”. Um calote virando “rolagem”. Lembra algo em movimento, quando, na verdade, vai paralisar a vida de muita gente, que ficará anos para receber o que já demora uma vida para ser efetivamente pago.

Esse fenômeno ocorre, no campo de visão semiótico, com o uso e abuso da linguagem como forma de manipulação. Quase sempre, essa postura abusiva e distorcida da linguagem ocorre por conjunção de interesses. Por exemplo, quando veículos de comunicação e o governo defendem a privatização de empresas públicas, em alinhamento com bancos e setores financeiros.

No geral, se aplica tal ‘procedimento padrão’ a quaisquer pacotes de iniciativas legislativas ou do Executivo com o rótulo “reformas do Estado” – que podem envolver entregas de conglomerados estatais a grupos privados, vendas, concessões, fim de direitos trabalhistas, tungada nas aposentadorias e outros “benefícios ao contrário” (para quem depende minimamente de políticas do Estado para sobreviver).

A propósito, também não deixa de ser uma malandragem linguística a forma como se trabalha termos como “Estado mínimo” e “Estado máximo”, na mídia e na política. Sempre que algo beneficia camadas ‘de baixo’, a coisa fica no campo pejorativo, logo se transformando em ‘avanço’ quando quem passa a ser o novo administrador é um agente privado. Ou quando os cofres públicos servem como apoio a bancos e instituições privadas – algo que é apresentado como “fomento às empresas e à geração de empregos”. Traduzindo: mais um truque para “não dizer” que o dinheiro público foi para os cofres do empresariado ou daqueles que se locupletam do Tesouro.

Bom, todo mundo sabe que expressões e chavões somem, voltam e tentam reaparecer como nova roupagem o tempo todo. É um fenômeno social e não é de hoje, obviamente. Mas é fácil identificar que alguns termos, denominações e certos palavreados apenas passam debaixo do chuveiro e retornam como se fossem novos em folha.

O rol é grande: “Nova política” (picaretas de sempre em outros partidos), “excesso de impostos” (para quem mesmo?), “carga tributária elevada” (isso o rico e os banqueiros falando), “conservadorismo” (atraso das castas políticas de sempre), “defesa da família, da moral e dos bons costumes” (putaria em geral que compõe uma geleia-geral de safadezas de gente que nem cora quando fala isso) e um número sem fim de expressões desgastadas (e repaginadas). Por fim, “cidadão de bem”, tomada emprestada do vocabulário de manipulação informativa dos tempos do nazismo na Alemanha, e que hoje se fala abertamente como alguém “de bem” – quando, em geral, é ao contrário.

Levando-se em conta o avanço das redes nesse universo, coisa que ainda engatinhava no Brasil quando Teixeira Coelho lançou pela primeira vez a citada obra, é importante lembrar outra estrutura linguística incorporada pelas redes ditas sociais, como Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp.

A mudança atende pelo que se chama de “opinionismo”, que nada mais é do que a popularização excessiva da emissão de opiniões. As pessoas passaram a ter opinião sobre tudo e sobre todos. Do palito de fósforo à bomba atômica, todo mundo quer se mostrar entendido sobre tudo o que sabe e, principalmente, aquilo sobre o qual não faz a menor ideia.  Faz parte do jogo, mas é danoso.

A pessoa lê um trecho de uma notícia, recebe, passa, repassa um meme, montagens grosseiras, notícias falsas e uma infinidade de barbaridades do que outrora se chamava ‘informação’ e sai por aí resmungando, xingando e anunciando o fim dos tempos nas redes, com linguagem em geral chula e carregada. Seria, de modo genérico, algo como o ‘terraplanismo informacional’, que remete à “opinião que está na internet” de que a Terra seria plana. Esse processo, operado no âmbito privado em determinadas redes, se relaciona ao que fazem os governos e o poder em geral.

Enfim, o assunto dá muito pano para as mangas e Teixeira Coelho estava coberto de razão quando criticava a manipulação descarada que se fazia, se faz e, com certeza, vai se fazer ainda mais. Quanto mais as redes avançarem na vida das pessoas sem o básico – que seria o senso crítico –, por sinal é algo que também não era popular na época em que a obra foi lançada.

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