
“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” (Fernando Birri, cineasta argentino, falecido em 2017).
Um jornalista que garimpou os dramas da formação histórica de um continente, fez história com um best-seller sobre este pedaço do mundo que habitamos e soube traduzir em palavras poéticas, doces, duras e surpreendentes o que muitos estudiosos levariam anos para descrever em minuciosos tratados e teses.
O uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), celebrado em 2021 pelos 50 anos da primeira edição do clássico As veias abertas da América Latina, influenciou os debates acadêmicos, arrebanhou milhões de críticos e admiradores mundo afora com obras que tinham a marca do escritor apurado, mas profundamente vinculado ao território que o pariu. Seria o mais latino dos americanos. Tudo em mais de 40 livros e obras de fôlego sobre o que é exatamente isso aqui que chamamos de América Latina.

Sobre As Veias Abertas da América Latina fica difícil dizer algo que não seja uma reverência ou até repetição do muito que já foi escrito, pois Galeano teve uma premonição que, disse no prefácio à edição do livro em 2010, meio que não gostaria de ter acertado o que relatou cinco décadas atrás em sua narrativa. Não só acertou como viu que as coisas pioraram em vários pontos, já que nos firmamos ainda mais como quintal dos interesses do capital internacional e regredimos de modo assombroso no campo ambiental, da exploração mineral e de outros recursos naturais.
Portanto, uma obra que nos mostrou nus, presos a um pedaço da história do mundo como se não houvesse amanhã para nós latino-americanos. E a edição comemorativa, lançada recentemente no Brasil pela L&PM Editores, traz o gosto amargo do passado que faz a região boiar entre turvas águas do neoliberalismo, o jugo das bolsas de valores, os golpes judiciais e o delírio das autocracias.
Mas nem todas as veias desta parte do continente foram abertas por Galeano em sua profunda e gigantesca obra – que abarca os diversos mundos integrantes do nosso sofrido território. Ele, na condição de exímio contador de histórias, também nos legou a belíssima trilogia Memória do Fogo, editada em português em 2013 (também pela L&PM).
Essa parte das memórias, como diz a apresentação do livro, tem um charme de épico das Américas, pois resgata memórias dos povos que viveram antes de nós, dos que chegaram aqui em suas embarcações no século 16, indo até os confins do século 20. E são deliciosos e tristes cânticos, poesias, passagens, meio contos, meio relatos, como se imitassem um romance, mas com recheio de realidade que somente seu gênio indomável e sua astúcia de escritor e jornalista tarimbado poderiam amarrar. Leva o leitor a períodos ancestrais, como quem oferece água nos rios límpidos que um dia existiram por aqui, bem como suas matas e sua diversidade intocada de outrora.
São lendas, poemas, gestos, pessoas, nações indígenas, povos, lugares, ambientes mágicos, religiosos, brutos e bordados de vestígios arcaicos. Entram pássaros, viram homens, luas, poeira de histórias, como afrescos de eras que sua forma de narrar praticamente marca nas paredes de cada lugar descrito. Ficam grudadas nos olhos dos leitores e mostram que existiu aqui uma gama de povos com marcas próprias.
O ano de 2021, da comemoração marcante de As veias abertas da América Latina, também serve para deixar Galeano como o eterno narrador das memórias de nossa gente mais distante. E bem distante dos pequenos infernos que tentam manter ardendo por aqui, por séculos e séculos, como querem os interesses dos que nos dominaram e dos que nos domaram.
Mas Galeano avistava o horizonte a partir da utopia, o que pode ser resumido num pensamento do cineasta e teórico argentino Fernando Birri, morto em 2017, citado por ele, e que se tornou célebre: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.