Por Belmires Soles Ribeiro *

Minha vida daria um romance!“, quantos presunçosos, depois de um longo suspiro e olhar longínquo, pronunciam essa frase, superestimando suas vidas insossas, convictos de serem merecedores da pena de um Hemingway ou, quiçá, de uma produção de Hollywood?
É bem verdade que, manejadas por uma pena brilhante, vidas comuns adquirem brilho espetaculoso, mas só pelo talento do artista em expressar-se em linguagem que consiga cativar a atenção do leitor.
Todavia, existem aqueles predestinados que protagonizam uma vida que, por si só, equivale a uma superprodução da Sétima Arte ou um romance de Hemingway.
Hedwig Eva Marie Kiesler, de origem judaica, filha de banqueiro, nasceu e viveu sua juventude na tempestuosa Viena (Áustria) às vésperas da invasão pela Alemanha nazista e, como diria o autor amante de clichês, “elevou aos píncaros” a similitude de algumas vidas ao romance pronto.
Regalada pelos deuses com uma beleza de diva, não de uma comum dos mortais, no verdor de seus dezoito anos, Hedwig estrelou o primeiro filme, de que se tem notícia da encenação do próprio orgasmo feminino, numa sociedade vienense ainda dominada por certo puritanismo e em que a mulher ainda ensaiava afrontar os cânones machistas.
O título da película dizia tudo: Êxtase.
O escândalo veio junto com o sucesso na carreira de atriz.
Com o advento da maré montante da feroz perseguição nazista aos judeus, e instada pelos pais atemorizados, casou-se com um milionário e influente negociante de armas, com o fito único de proteger a família.
Conseguiu o intento, mas converteu-se numa prisioneira doméstica, tendo que abandonar a amada carreira artística e suportar os ciúmes tirânicos do poderoso consorte. Depois de uma fuga plena de peripécias, conseguiu chegar aos Estados Unidos onde, superando os problemas da língua e a origem semita, tornou-se uma das maiores atrizes do cinema de Hollywood, estrelando sucessos mundiais como, por exemplo, Sansão e Dalila, contracenando com Victor Mature – além de vários filmes com Clark Gable, Spencer Tracy e outros monstros sagrados.
Quem pode afirmar que teve uma vida tão pródiga de aventuras?
Mas não parou por aí.
A par de sua beleza, a ponto de ser considerada uma das mulheres mais lindas do mundo na sua época, Hedwig era dotada de uma prodigiosa inteligência e, nas horas vagas, dedicava-se a fazer experiências científicas, tendo montado um laboratório em sua casa.
Mas não se tratava de criar um novo zíper (ou, como se dizia à época, “fecho éclair”), um tecido diferente ou uma novidade eletrodoméstica, e sim a invenção de um revolucionário sistema de comunicação sem fio, com o objetivo do controle remoto dos torpedos americanos, evitando a interferência dos radares alemães. Tal aparelho, devidamente patenteado naquela ocasião, é reconhecido hoje como precursor dos sistemas Wi-Fi e da própria telefonia celular. Em 2014, o nome da inventora foi inscrito no National Inventors Hall of Fame, organização americana que honorifica homens e mulheres responsáveis pelos grandes avanços tecnológicos que possibilitaram o progresso humano.
Se algum roteirista maluco apresentasse tal script, certamente seria considerado pouco verossímil.
Estamos a falar de HEDY LAMARR, a grande estrela de Hollywood, tema de várias obras biográficas; uma das mais recentes é de autoria de Marie Benedict, “A Única Mulher”, de agradável leitura. Ademais, constata-se a existência de várias matérias no Google e Youtube, e outras mídias sociais, coonestando a veracidade da incrível trajetória de vida ora reportada.

Mas, depois de tanta grandeza humana, será que um prosaico burrinho poderia enunciar “Minha vida daria um romance?”.
Bem, se ele fosse um burrinho pedrês poderia dizer: “Minha vida daria um conto”.
Prova disso é o conto O Burrinho Pedrês, incluído na magistral obra Sagarana, de Guimarães Rosa, médico, diplomata e escritor de nomeada, autor de cuja genialidade um causídico amigo meu certamente diria “nunca assaz louvada”.
Sete-de-Ouros, este era o nome do burrinho, na mocidade fora comprado, dado, trocado e revendido. Montado em seu dorso morrera um tropeiro, baleado pelas costas. Certa vez, trouxera do pasto uma jararacuçu dependurada no focinho, só não morrendo porque de pronto lhe acudira o benzedor. Raptado por ciganos, conseguira ser resgatado por seu último dono.
Mas, como judiciosamente escreveu Guimarães Rosa, a história de um burrinho, assim como de um grande homem, pode ser tomada pelo resumo de um só dia de sua vida. Nesse dia exemplar, o já idoso e decrépito burrinho fora levado para acompanhar a condução de uma boiada no sertão mineiro quando, na volta, enfrentaram uma grande e inesperada enchente, cuja correnteza ceifou a vida de vaqueiros e respectivas montarias. Mercê de seu instinto de sobrevivência e teimosia ancestrais, Sete-de-Ouros logrou salvar a si e a seu condutor, um rematado beberrão, chegando de volta à fazenda de seu dono.
Bem analisando essas vidas paradigmáticas, só me resta afirmar, após longo suspiro e mirando o infinito:
“Minha vida daria uma nota de rodapé”.
* Belmires Soles Ribeiro é Procurador de Justiça/MS
NOTA DO EDITOR: este é o segundo artigo de colaborador/convidado deste site, que ficará disponível permanentemente na guia Convidados (as).
Muito bom texto, surpreendente. Eu acho que, no meu caso, teria que melhorar muito para ser melhor que o burrinho pedrês. Kkkk
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Tião, meu caro! Obrigado pelas referências e pelo comentário. Continue lendo os artigos diariamente!
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Texto excelente. Um abraço amigo Djair.
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Obrigado, amigo! Abraço!
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