
O livro Um General na Biblioteca, de Italo Calvino, reúne 32 contos do escritor italiano criados entre 1943 e 1984, mas duas dessas narrativas merecem um olhar mais aproximado pela sua atualidade e insistente repetição histórica. Se revezam no tempo e no espaço onde ocorrem, inclusive no Brasil varonil.
No primeiro deles, a engenhosa história da intervenção militar decretada pela Estado-Maior na biblioteca da região da Panduria, onde supostamente haveria muitos livros que “desmereceriam o prestígio militar”. A cúpula nomeia o general Fedina, um tipo escrupuloso e diligente, para investigar este e outros desvios que estariam ocorrendo.
Em sua missão, o general isola a área, impede a circulação de pessoas e passa a trabalhar exaustivamente com sua pequena equipe de subordinados, detida no pente-fino do vasto acervo guardado naquele equipamento. Uma tarefa dura, que exige leitura, observação, atenção e classificação de cada obra lida.
Para não cansar e nem matar a curiosidade de quem ainda não leu o livro, a narrativa se encerra para demonstrar o poder transformador de elementos da cultura, como a leitura, que muda os rumos da pretendida empreitada intervencionista.
A história, criada quando Calvino tinha apenas 24 anos, resumiria o óbvio contido na frase célebre do poeta gaúcho Mário Quintana acerca do poder dos livros e da leitura: “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”.
No segundo conto, intitulado A Decapitação dos Chefes, Calvino vai fundo no imaginário popular ao cogitar acerca do que as pessoas fariam para sentir o gosto do poder e, ao mesmo tempo, explora o dissabor destas quando chega o momento de ‘perderem a cabeça’ quando deixam seus cargos.
Numa aparente naturalidade e em clima típico do realismo italiano, a história se passa num lugar aonde um viajante chega no dia em que ocorre uma corriqueira e insólita solenidade – a tal “decapitação” – realizada em praça pública, com pompa e circunstância. Na dita cidade surreal, o destino de “todos os chefes” é o corte do pescoço ao final de cada mandato. Essa é a condição básica para o exercício do poder no imaginário de Calvino, notabilizado por sua ironia e militância em favor da causa democrática e contra os regimes de força.
Um detalhe curioso incrementa a ocorrência narrada: não importa o que os ora prontos a oferecer seus pescoços à guilhotina fizeram em seus cargos, de bom ou de ruim. Simplesmente a população verá suas cabeças rolando, como num esdrúxulo ‘exercício democrático’ em que ninguém escaparia da perda da própria vida para exercer o poder, não havendo distinção se corruptos ou ilibados.
Tirando o surrealismo de Calvino, o fato é que o exercício do poder, entre nós, carrega excessivos bônus, benefícios e uma variada gama de proteções. No máximo, corta-se um mandato, afasta-se o sujeito da vida pública ou abrevia-se a ação parlamentar de outro pego com a mão na massa.
É, também, uma metáfora da perda da ilusão em todo o mundo contemporâneo com os nossos sistemas representativos. As gargalhadas do povo da cidade lendária de Calvino, ao ver as cabeças de seus chefes rolando uma a uma como pagamento pelo prazer do exercício do poder, encerra um perigoso jogo que não garante terminar bem se adotado como mero repúdio ao que consideramos insuficiente e falho – no caso a representação política das democracias atuais.