
A humildade manda avisar que faz bem eu assumir a minha brutal ignorância acerca da obra de Clarice Lispector (1920-1977). O que conheço das criações de sua mente inquieta, gestada ucraniana, mas moldada brasileira, é quase nada: A Hora da Estrela, a coletânea Todos os Contos e a biografia Clarice, escrita pelo norte-americano Benjamin Moser. O mais seria lorota e aparência. Ou não passaria de uma sequência de cliques, copia e cola do que já disseram.
Este é um texto-confissão sobre o que nos angustia enquanto leitores e leitoras: por que eu nunca parei, de verdade, para ler Clarice? Quanto eu li de Machado de Assis, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa, Oscar Wilde, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond, Julio Cortázar, Jack Kerouac, Stefan Zweig, Elena Ferrante, Cora Coralina, Eduardo Galeano, Carolina Maria de Jesus, Adélia Prado, Conceição Evaristo? Faltou tanta gente não vale a pena seguir nomeando.
A confusão se instala só com a invenção de montar uma lista de escritores e escritoras que gostaríamos (ou deveríamos) ser obrigados (leitores sabem o que isso significa) a ler, conhecer e recitar passagens de suas obras, nem que fosse mentalmente. Todo leitor tem lacunas das quais nunca conseguirá se livrar.
Para não cometer um ‘leitorcídio’ – se é que isso existiria -, melhor focar no que deixei para trás até hoje de Clarice Lispector. Citar livros dela é fácil com rápidas consultas na internet: tem esse, tem aquele, aquele outro, blá-blá-blá-blá-blá. Mas é um bálsamo citar uns que muita gente citou perto de você e ficou aquele clima de “nunca li, deveria ter lido”. Como não lembrar de Perto do Coração Selvagem ou de A Paixão Segundo G.H.? Você escapa ao falar de A Hora da Estrela e passagens da dolorosa vida de Macabéa e não rende muito mais que isso. Se escora na biografia feita por Benjamin Moser e não se mete mais a besta.
Esses dias, ao arrumar livros, dei de cara com a coletânea Todos os Contos, que traz uma sobrecapa com uma foto clássica do olhar dela, enigmático. Aparenta alguém que não quer dizer nada. Talvez seja uma foto qualquer, mas preciso inventar que transmite algo que ninguém até hoje captou de sua fisionomia austera. Um sinal de que não aceitava a vida. E, por isso, criava seu mundo bárbaro, cercado de coisas desencontradas.
A releitura de parte desses belíssimos contos, suas entranhas e passagens integram esse processo de necessidade de preenchimento das crateras que tenho em relação a uma obra tão vasta quanto significativa. Mas o que seriam diante de um caminhão de livros dela que não li até hoje? Sua personalidade marcante, que imprimia aos seus personagens, sua perspectiva intimista na escrita e a forma de escrever que não deixavam escondidas as qualidades e defeitos humanos que fazia questão de expor. Isso era Clarice e isso está no que li e no que ainda vou ler.
Sinto que preciso reaprender a ler a escritora, jornalista, contista, tradutora e viajante angustiada que foi. A mesma coisa perseguirá o meu caminho em relação a muita gente que listei lá em cima.
Talvez, ironicamente, isso que alimenta a ilusão de leitor em relação aos livros – de se sentir sempre menor do que é em termos de quantidade e qualidade das suas leituras – é o que faz com que não abandone esse vício precioso.
Sim, vou continuar firme na dependência. Clarice Lispector me obriga!