Como aprender a ser só?

Por Luciana Xavier Senra*

Foto por Mikhail Nilov em Pexels.com

Eu poderia começar esse texto afirmando de uma maneira ainda mais imperativa que o mundo foi abatido, em 2020, pela pandemia de COVID-19. Não deixei de fazê-lo. Sabemos das repercussões até o presente: há vacinas e, igualmente, variantes do vírus que nos obrigam a demandar ainda mais por vacinas. Terceira dose ou dose de reforço.

O mundo parou, sufocou, brincou com a própria sorte, se abateu, suspirou, tomou fôlego, respira e segue… O Brasil… O Brasil seguiu. Foi gripezinha, fizemos o quê? Não somos coveiros, o que vocês querem que seja feito?! O país agoniza e… Morre! Já são quase 600 mil vidas perdidas para o COVID-19. Mas… e daí, né? Todo mundo vai morrer um dia! Todos os dias muita gente morre de tanta coisa e ninguém diz ou faz nada! E não tem feito mesmo.

O curioso é que os estudos da área de economia que envolvem emoções e tomada de decisão desde a década de 1960 e, agora, século XXI, aliados à neurociência cognitiva, nos ajudam a compreender o quanto de prejuízos é possível apurar decorrentes da massiva exposição às proposições acima listadas. Quanto mais expostos a essas falácias, mais influência temos sobre nossas decisões acerca destas afirmações errôneas. Isso graças a nossa limitada racionalidade. Não somente não é possível, segundo os estudos mencionados, termos acesso a todas as informações, como também não há capacidade cognitiva (capacidade de conhecer) para lidar com tudo isso de maneira deliberada. Estamos todos fadados aos erros cognitivos, às heurísticas e vieses cognitivos e, com isso, distorcemos e deturpamos mais e mais experiências, vivências, regras, equipamentos institucionais e jurídicos.

Outros estudos pós-COVID-19, os das ciências biológicas e da saúde, especialmente na representatividade do Centers for Disease Control and Prevention-CDC (2021), investigam os tipos de sequelas do vírus e já foi oficializado o termo COVID longa ou prolongada, com prejuízos sensório motores e neurocognitivos. No Brasil, no Instituto de Neuropsicologia da USP, em acompanhamento aos pacientes recuperados, o desafio é o de devolver-lhes a funcionalidade de movimento e cognitiva, especialmente nas funções da atenção e memória, principalmente para assegurar o pleno desempenho no exercício das atividades profissionais. Para além das funções cognitivas, o aumento da prevalência dos transtornos de ansiedade e depressão. As queixas e demandas por acompanhamento psicoterápico e psiquiátrico dispararam.

Para mais além da discussão de tom científico até aqui adotada, é válido citar outra mazela da Pandemia: a de colocar em evidência a epidemia de violência contra mulheres. Avós, mães, filhas, “as filhas, filhas de suas filhas, verdadeiras ou adotivas…”, todas sofreram ainda mais violência no âmbito doméstico e familiar em 2020 e nos 8 primeiros meses de 2021. Aumento de solicitação de medida protetiva, do desemprego da mulher, do acúmulo de tarefas que já eram sobrepostas e acumuladas. Todas, maltrapilhas e maltratadas. Mortas!

Ironicamente a palavra morte é um substantivo feminino, ainda que eu tenha que usar uma expressão com flexão de gênero no masculino para dizer isso. Outra ironia nos coloca a cilada gramatical da língua portuguesa para a discussão da desigualdade de gênero tão mais explícita com a pandemia por COVID-19.

Mas… voltando… a palavra Morte é feminina e tal como as mulheres, é sutilmente forte; porém, tem sorte, afinal sempre vence e tem seu próprio norte. Ficou ridícula essa cacofonia, mas se trata da sinfonia fúnebre de seu trompete para avisar que com ela não se compete. E nessa não competição ou competição desigual estão as crianças. Quantos são os órfãos no Brasil hoje? Segundo a BBC News Brasil de 22 de julho de 2021, estima-se que sejam em torno de 130 mil. Cento e trinta mil crianças e adolescentes vilipendiados de seu direito à convivência familiar como preconiza o Estatuto da Criança e Adolescentes-ECA.

Como se aprende a ser só? O que e como se aprende sendo só?

Curioso que… Trago curiosidades nesse pretenso texto. Os estudos sobre saúde e qualidade de vida, especialmente os que abordam cultura e perspectiva de tempo, destacam elementos ora interessantes. Culturas cuja perspectiva de tempo é centrada e preferida em uma determinada zona de tempo (passado, presente ou futuro), tende a influenciar, mesmo que temporariamente, na dinâmica das decisões, atitudes e comportamentos das pessoas ou instituições. Quando dessa curta influência, identificam-se as relações entre tempo e valores básicos de uma dada cultura na composição e comportamento de grupos, tal como individualismo e coletivismo.

Isso implica dizer que culturas caracterizadas pelo individualismo priorizam mais a orientação futura em busca de resultados e apresentam ritmos de vida compatíveis com o que seja urgente. Em contrapartida, culturas caracterizadas pelo coletivismo priorizam a relação social, a vivência familiar, a união para favorecer compartilhamento e cooperação. Consequentemente, a atitude em relação ao tempo é menos exigente, centrada no passado positivo e no presente. Não é difícil para o leitor nesse momento situar o Brasil e outros países mais prejudicados pela pandemia e tantas outras mazelas sociais.

Os estudos em Psicologia Social, Psicologia do Desenvolvimento, Biologia, Etologia e as Neurociências Cognitivas, para não citar somente as Ciências Sociais, são consensuais na concepção de que o ser humano é dotado de instinto gregário e carece da filia para se firmar como pessoa com capacidade cognitiva, consciente de si e das maneiras pelas quais constrói conhecimento. Isso só é possível porque somente somos o que somos por estarmos e sermos com os outros. E estes outros são, primordialmente, as pessoas com as quais estabelecemos nossos vínculos fundamentais para sobrevivência, para afetos genuínos, autoconhecimento… Não pretendo esgotar o tema aqui, fazer um tratado. Contudo, se há discussão, debate e pesquisa, por exemplo, sobre identidade, estamos a sinalizar o quão basilar é o convívio familiar para a psique humana.

Nesse entendimento, falar de crianças órfãs, é falar de pessoas que mal concebem plenamente o mundo. Entre os 5 e os 7 anos, por exemplo, há o pensamento do tipo simbólico, mas não abstrato. A significação da dor da perda carece de uma abstração da qual a criança ainda não dispõe. Nota-se que a dor é o único sentido humano que possui dupla dimensão: física (sensorial/tátil) e psicológica (subjetiva). A dor infantil ainda é mais peculiar em virtude da imaturidade de seu sistema nervoso. Como dizer de uma experiência que, além de não estarem preparados para ela, ainda não foi quiçá entendida no curso das experiências de vida? Como compreendem uma perda se quem as poderiam apoiar já não está com elas? Como se aprende ser só? Sendo?

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5), o luto consiste em um processo natural e esperado diante de perda ou ruptura de vínculos. Passa a ser patológico quando persistem problemas cognitivos, comportamentais e emocionais por pelo menos 12 meses da perda ou ruptura significativa repentina. Tendo isso em vista, como estão nossas 130 mil crianças e adolescentes órfãos de pais e/ou cuidadores em sua maioria avós? Estão elas aprendendo a serem sós? Estão aprendendo, sós? Quem tem sido seus suportes emocionais e práticos?

E você adulto, que mal suporta visualizar quem fita no espelho por insistir em matar a criança que reside em si, já aprendeu a ser só? Ou, insiste em negar que só, estará a espreitar com vermes ansiosos por roer os olhos que jaz, sem enxergar, nunca tiveram visto órfão em vida? E você, adulto, em ânsia análoga a ânsia que sobe agora a tua boca por ler estas retóricas palavras, permanecerá na frialdade inorgânica da terra que de um lado tem carnaval e do outro a fome total?

Como disse Norbert Elias (2001, p. 11), “não é a morte, mas o conhecimento da morte que cria problemas para o ser humano”. E se não a conhecemos, não temos problemas; nos damos por satisfeitos com eufemismos imperfeitos e em ambiente de repugnância, recusamos as ruínas enquanto bebemos, em sangue, o podre das carnificinas.

* Luciana Xavier Senra – Psicóloga, Doutora em Psicologia, Professora Universitária e Psicoterapeuta que ouve música, lê Augusto dos Anjos e possui vícios de linguagem.

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