
Qualquer pessoa que se autorrotule ‘conservadora’ ou tenha a mentalidade excessivamente amarrada a padrões, suspeito, nunca será bem-vinda ao universo corrosivo do filósofo, escritor e ativista espanhol Paul Preciado. Muito menos se souber, ainda que de leve, de alguns dos pressupostos que integram um dos seus livros mais aclamados – Manifesto contrassexual (n-1 edições, 2014).
De fato, ninguém espere encontrar no livro um conjunto ordenado de explicações como se fosse um manual sobre sexualidade. Embora seja embasado em fartos estudos e literatura científica acerca do corpo, gênero e comportamento, a potência do texto de Preciado vem da demolição que faz de tipos pré-estabelecidos, incluindo questões relativas ao orgasmo, às atribuições de sexo dadas como construção social de homem, mulher, hétero, homo e denominações que estão no centro das polêmicas questões de gênero mundo afora.
Sua obra tem como referência trabalhos de autores consagrados como Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guatarri, além da visão contemporânea de Judith Butler, dentre outros pensadores e pensadoras.

Sim, não seria possível imaginar um trabalho com esse tipo de conceituação e profundidade se não fossem trazidos ao centro dos debates os processos pelos quais se discutem os desejos, as polêmicas sociais criadas em torno da orientação sexual, do ânus e dos brinquedos sexuais – cujo debate mobiliza conhecedores, religiosos, estudiosos, curiosos, reprimidos, filósofos, ativistas das questões de gênero e todo mundo que acha que entende dos temas porque sua postura já veio definida do útero materno.
A obra tem esse viés de provocação em todas as páginas por se propor a incentivar a busca de um conhecimento que sofre rechaço de todos os lados, repúdios, repulsas, interdições e se mantém distante, inclusive, de importantes centros acadêmicos mundo afora. A perspectiva do autor é fazer com que os leitores/ativistas passem a difundir a ideia de que seria necessário a proposição do que chama de ‘contrassexualidade’ não só como forma de protesto, mas de postura política, tendo em vista o futuro e a liberdade de ser o que se quer ser.
Portanto, faz sentido quando Preciado aponta sua mira para noções contemporâneas de gênero e desejo, por exemplo, o que fez com que entrasse em conflito até com importantes setores engajados do movimento feminista mundial. A acusação feita a ele, de certo modo, também foi estendida à pesquisadora e ativista Judith Butler, que poderiam estar ajudando a desviar o foco central da temática da luta das mulheres quando tocam em pontos que não acrescentariam ao acúmulo teórico e prático da luta real das mulheres por direitos e igualdade.
Que dirá o que se pensa desse tipo de produção científica nas hostes mais atrasadas das sociedades, pois os vícios do pensamento nunca foram banidos por quaisquer movimentos revolucionários ou levantes de homens e mulheres ao longo dos últimos séculos – alerta o pesquisador.
Tem-se, portanto, um material de forte conteúdo que não se volta à construção de consenso algum, e sim – diz o próprio autor – tem seu potencial direcionado às “práticas subversivas de identidade sexual”. Seu caminho se encaixa muito mais no que se poderia chamar de pós-feminismo, incluindo os insultos que isso atrai.
Afinal, quais pontos nos identificam como homem, mulher, hétero, homo ou quaisquer das vertentes de modelação do corpo, do físico e da mente que se permite ao humano?
Todavia, não pense que o trabalho de Preciado se presta a puro lero-lero de mídias sociais ou para inflamar pastores de livros sagrados em mãos a berrar contra as “blasfêmias” que supostamente traz: busca fundamentação sociológica, pesquisas profundas de caráter científico e no plano da teoria queer. Com um detalhe: o debate sobre o corpo aqui feito inclui o que o filósofo chama de ‘tecnossexualidade’ – numa referência a tudo o que se constrói com o uso da tecnologia e do corpo.
No mínimo, faz você pensar que existe sempre algo sobre o qual nunca alguém que você conhece teve coragem de falar em público. Pelo menos até onde você ouviu falar do campo da sexualidade. Ou da ‘contrassexualidade’, como prega a obra, demolidora por natureza.