Quem foi Anônimo de Lima?

O cantor e compositor que adotou o nome artístico de Anônimo de Lima

Vou contar uma história que tem todos os ingredientes de um bom conto ou de uma crônica, mas foi tão real que perderia a graça e o sentido se fosse pura invenção.

Ela começa com o primeiro contato pessoal que mantive com um vendedor ambulante, morador no bairro paulistano do Itaim Paulista, cujo sonho era ser cantor. Tudo se passa em meados da década de 1990, quando criei e dirigi um jornal de bairro numa região que concentra mais gente do que muitas cidades de médio porte do Brasil – cerca de 450 mil pessoas (num bairro).

Figura de riso fácil, sempre circulando entre pessoas da comunidade, Ailton Ferreira Lima – seu nome verdadeiro – andava para lá e para cá com um balaio recheado de produtos tão díspares quanto amendoins, salgadinhos feitos com banha de porco, preservativos masculinos, cocadas e broas de milho. Adianto que você nunca ouviu falar dele, mas saberá quem foi e o que fez esse simpático e aguerrido migrante que viveu durante anos na Zona Leste de São Paulo.

Quando o conheci, soube que seu projeto pessoal era levar adiante o desejo de virar um cantor conhecido. Só que resolveu adotar o curioso nome artístico de Anônimo de Lima – com o qual gravou cinco CDs e dezenas de músicas. Numa entrevista que fiz com ele para o periódico que editava, questionei o uso do “Anônimo” e ele deu uma explicação sui generis: “Quem sabe eu me passando por anônimo um dia não fico conhecido?”.

Para minha surpresa, certo dia ele me aparece com nada menos do que dois CDs gravados (reproduzo as capas para ilustrar e provar sua existência). Sim, isso mesmo que você leu: se você um dia pensou em entrar num estúdio e gravar um disco autoral, saiba que Ailton, ou melhor, “Anônimo”, gravou quase meia dúzia deles. Com recursos próprios, “guardados embaixo do colchão”, segundo confidenciou na entrevista concedida para divulgação.

Frequentador assíduo de uma igreja evangélica do bairro, Ailton Lima vendia alguns dos seus produtos aos irmãos e juntava o dinheiro que conseguia em longos passeios pelos ruas do Itaim Paulista. Era fácil encontrá-lo papeando e oferecendo seus CDs e ‘kits variados’. A turma se divertia e o ajudava.

Suas gravações foram feitas por um desses selos do universo evangélico intitulado Renascer Gospel Music – de São Paulo, como deve ter ocorrido a muita gente que perseguia essa trilha.

Capa do volume II de “Anônimo de Lima”, o cantor popular da ZL de SP

Curiosamente, a temática de suas letras era uma mistura de muita coisa desconexa. Falavam, por exemplo, do seu amor – simultâneo – por times de futebol como Palmeiras, Corinthians, Santos e São Paulo, o que denotava sua esperteza para ‘agradar’ quaisquer torcedores. “Quero mais é vender meu peixe”, dizia. Também abordavam questões religiosas e, como não poderia deixar de ser, o universo do ‘brega’, com canções sobre amor, paixão, traição, perdas e ganhos de amores e mulheres.

Não sou crítico musical, mas Anônimo de Lima tinha mais vontade do que técnica em matéria de interpretação e composição na sua vasta obra. O desejo de ter sua voz gravada, o empenho, as economias que custearam sua produção musical certamente falaram mais alto do que o dito ‘talento’. A voz dele não era das mais afinadas e nem sempre as letras eram de todo inteligíveis e sinceras, digamos.

Tirando as brincadeiras, a sátira e descontados os erros que possa ter cometido pela passagem do tempo, o fato é que Ailton “Anônimo” de Lima foi uma figura serena, sincera, alegre e cordial com quem tive o prazer de dividir alguns dias na tarefa de cobrir o cotidiano do bairro no jornal de circulação local, cujo escopo também abarcava destacar pessoas comuns que alimentavam sonhos como o dele.

Foi gratificante vê-lo sorrir e ter seu desejo realizado – mesmo que não tenha alcançado a fama e o estrelato desejado por qualquer artista. A passagem do tempo, as mudanças pessoais e a distância deixam uma boa lembrança de quem foi esse cantor desconhecido do grande público. Que eu conheci. De perto. De verdade.

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