

Cartazes de divulgação de Formiguinha Z e Vida de Inseto/Reprodução
É impossível alguém ver ou rever Formiguinha Z e Vida de Inseto, não se emocionar ou não ficar curioso com vários aspectos do que é mostrado nesses dois desenhos animados. São clássicos de animação dos EUA dos final dos anos 1990 com forte relação entre tempo, produção, temática, personagens e enredo – que permanecem como histórias inovadoras até hoje.
A começar pelo tempo e produção: ambos foram fruto de uma disputa entre dois estúdios de animação – Pixar (de Steve Jobs) e DreamWorks (de Jeffrey Katzenberg) – considerados ícones do mercado de criação e que dispensam muito lero-lero de apresentação. A Pixar, ainda sob controle de Jobs, produziu Vida de Inseto para a Disney. Já a DreamWorks teve Formiguinha Z como produção própria e, na sequência, pelo menos uma dezena de grandes sucessos pelas mãos de Katzenberg.
Não custa lembrar que a Pixar foi uma ‘diversão’ de Jobs quando da sua briga interna na sua empresa principal, a Apple. E que Katzenberg, depois disso dirigiu por anos a fio os estúdios Disney, na época de ouro em que foram produzidos os principais sucessos da companhia de Walt Disney a partir dos anos 1990. Ele ficou 10 anos à frente dos estúdios Disney , ajudou a criar quase de 700 filmes e programas de TV. Entre outros sucessos mundiais, ele comandou O rei Leão, A bela e Fera e Aladin.
Em relação ao tempo, os dois filmes foram terminados e colocados no mercado em datas muito próximas, no final do ano de 1998. E, por fim, que tempos depois a Disney comprou o estúdio fundado por Jobs. O resto é história.
A briga entre dois estúdios, de fato, começou pelo tipo de enredo utilizado nas duas animações: formigas que não estão satisfeitas com a vida que levam no formigueiro e são ousadas demais em relação às suas comunidades. Além do mais, criam confusões, inventam novos modos de trabalho (ou de fugir dele) e não se enquadram nos perfis de ‘operários’.
As semelhanças entre as duas obras foram os pontos centrais da briga que envolveu a turma de Jobs e Katzenberg, com direito a insultos e ameaças de processos milionários de parte a parte. O principal é que as histórias acabaram nas telas e atraíram um público gigantesco aos cinemas, renderam milhões nas bilheterias e nos produtos de suporte criados na esteira dos personagens.
Embora não seja possível negar determinadas semelhanças, as duas animações acabaram diferenciando seus personagens em questões de fundo, principalmente no tocante às ‘personalidades’ das formigas protagonistas (de Formiguinha Z, claro, e Flick, de Vida de Inseto).
O primeiro era claramente depressivo, desajustado, enquanto usava de um senso de humor incomum para esconder seus fracassos e desejos. Já Flick tinha um ar mais ingênuo, trapalhão em excesso, absurdamente criativo e sonhador. Na trama, as formigas principais apresentam momentos em que se poderia suspeitar que um estúdio meio que ‘copiou’ alguma coisa do outro, em matéria de comportamento – certamente parte do que gerou as desconfianças e os arranca-rabos cinematográficos.
No campo das inovações para a época, temos situações nos dois filmes que não eram muito comuns para esse tipo de produção: ambos trouxeram mensagens subliminares sobre o que se chama na Sociologia de ‘luta de classes’ ou de ‘consciência de classe’. Essa abordagem ganha corpo quando Z descobre que é parte de uma engrenagem de poder que apenas faz com que operários reproduzam infinitamente gestos – “como sempre foi”. O mesmo ocorre com Flick, ao testar suas invenções, quase sempre motivo dos problemas que enfrentava ou dissabores que viveu no formigueiro até terminar como herói. Isso também ocorre com Z, quando acaba salvando o formigueiro do extermínio.
Em matéria de trato com o poder e suas estruturas, os dois filmes também carregam nesse tipo de amostra: em Formiguinha Z tem um “general nazista”, enquanto em Vida de Inseto a gangue dos gafanhotos comandada pelo opressor Hoper age com truculência e ameaças de massacre de formigas que ameaçam se rebelar. E deixa claro que o faz porque detém o poder historicamente.
Entre a ‘luta de classes’ e a ‘consciência de classe’, formigas como Z e Flick sonham com o mundo exterior, vivem romances, passam todos os perrengues possíveis e imagináveis para criaturas tão frágeis e pequenas e enfrentam a representação do poder externo, os seus predadores – e até inimigos internos.
As crianças – e adultos – que assistem aos dois filmes de modo despropositado certamente não ligam ou não percebem a sutileza da temática complexa ali colocada. A diversão e os momentos de alegria, tristeza e dificuldades fazem com quem tudo pareça um universo de meras formigas que enfrentam dificuldades e superam tudo e todos. Um prato cheio para a turma da autoajuda e dos exploradores da boa-fé dita ‘meritocrática’.
Afinal, não é todo dia que formigas saem dos seus formigueiros e dos seus mundos e tomam consciência de quem são e do que estão fazendo ali no eterno universo onde tudo se reproduz tão naturalmente quanto cortar folhas, buscar alimentos e outros suprimentos.
Como ocorre no mundo real dos adultos (humanos), as formigas são obrigadas – pela natureza das relações ‘sociais’ ou da condição existencial – a sustentar os que estão no poder e trabalhar mais do que outras. Digamos que a parte meramente infantil termina por aí: quando os protagonistas minúsculos tomam consciência do seu papel e mudam o mundo em que vivem.
Algo com nuances do que defendia Paulo Freire em relação aos humanos, né?