
Por Marcos Barreto *
Durante a pandemia experimentamos mudanças radicais em nosso cotidiano. De uma forma abrupta, sem aviso prévio ou possibilidade de nos planejarmos com antecedência, fomos confinados em nossas casas. No início achávamos que duraria pouco, que em duas ou três semanas, no máximo, estaríamos de volta à nossa velha rotina. O tempo foi passando e percebemos que não era bem assim, que deveríamos nos preparar para um tempo de confinamento que, seguidas vezes, era protelado.
A nova rotina, essencialmente em casa, com rápidas saídas apenas para suprir necessidades básicas como a compra de alimentos, produtos de limpeza e medicamentos, nos levou a experimentar algo novo, um novo cotidiano e, porque não dizer, a experimentação de “novos relacionamentos” com pessoas que já nos eram muito próximas, como nossas companheiras, companheiros, pais, mães, filhos, irmãos e outros familiares que habitam o mesmo espaço. Digo “novos relacionamentos” porque a presença e a intimidade do lar compartilhada o tempo todo, num regime 24/7 por longos meses, não guarda relação com a convivência intensa, mas restrita aos finais de semana, noites, feriados e eventuais férias.
Essa presença intensa e duradoura nos impôs inúmeros desafios relacionais. Num processo de redescobertas dos nossos entes mais queridos, tivemos que lidar com as alternâncias de bom e mau humor constante; convivemos com nossas inseguranças e de nossos familiares; desenvolvemos o exercício da paciência e da tolerância e, acredito, na maior parte dos lares, fortalecemos os laços de afeto, confiança e cumplicidade.
No desafio por tornamos nosso cotidiano menos enfadonho, procuramos atividades que quebrassem nossa rotina e, porque não dizer, levassem nosso pensamento para outro lugar, distante de nossas casas, por campos e paisagens diferentes. Para isso, poucos recursos se mostraram tão poderosos quanto os permitidos pela cultura de forma geral. Assistir filmes, séries, ler livros ou ouvir música foram atividades necessárias, quase como um contraponto ao maçante mundo dos poucos encontros, impossibilidade de deslocamentos e cansaço das tele reuniões ou tele aulas.
Descobrimos que podemos viver quase sem sair de casa, com encontros, reuniões e até comemorações remotas, mediadas pela tecnologia. Todavia, da mesma forma descobrimos que é praticamente impossível viver sem assistir a um bom filme, ler um livro, ou ouvir uma boa música. A razão para isso não é difícil deduzir: a cultura lida com o campo do subjetivo e das emoções, capacidades inerentes a nós, seres humanos. A cultura é, ao mesmo tempo, expressão das nossas tradições, crenças e costumes, mas também é o mecanismo que afirma nossa condição humana e histórica; liberta e expande nossa mente, nos permite sonhar e acreditar em outro mundo. Em tempos pandêmicos, com a morte rondando por perto, não é pouca coisa…
O lado contraditório desse movimento de reconhecimento da cultura como elemento fundamental para a vida humana é a forma perversa como os profissionais de cultura, de maneira geral, foram atingidos pela suspensão de suas atividades presenciais. Diferente de outras atividades econômicas, a cultura é feita de aglomerações. Shows musicais, espetáculos de dança, peças de teatro e exposições só são realmente possíveis e plenas se realizadas de forma presencial. Mesmo o conteúdo audiovisual, para ser realizado, demanda dezenas, até centenas de profissionais presentes num set de filmagem.
Impedidos de trabalhar, numa atividade que ganhou evidência como poucas vezes se viu na sociedade, milhares de artistas ficaram “desempregados” da noite para o dia. No Brasil essa situação só foi amenizada com o apoio estatal, público, de transferência de renda emergencial conseguido com muito esforço do setor cultural.
Agora que as atividades presenciais ensaiam o retorno é preciso aprender com a experiência de reclusão que nos foi imposta. Retomar a vida profissional e cultural, ao que eras antes da pandemia, pura e simplesmente seria um imenso erro. Precisamos retirar da experiência da reclusão forçada o que ela nos trouxe ou revelou de positivo para seguir vivendo num novo ritmo e dinâmica.
Entre essas boas experiências, reforço a importância da cultura em nossas vidas. A beleza das imagens de um filme; a leveza da viagem que a leitura de um bom livro nos conduz; o sentido da poesia ou a criatividade do improviso de sax numa música de jazz precisam permanecer em nossas vidas, como uma afirmação e comemoração da nossa própria existência.
Com os inúmeros recursos eletrônicos percebemos a possibilidade de vivenciar a cultura sem que seja preciso nos deslocarmos. Mas precisamos agora, ao retomar os encontros, mesclar essas experiências remotas com a presença em cinemas, teatros, casas de música e exposições. Precisamos valorizar os artistas, compreender que para estar em cima do palco cada um deles dedicou horas e mais horas de estudo, preparo, que o caminho até o palco é de muito suor e solidão. Reconhecer esse esforço é estar presente em suas apresentações, mas também remunerar de forma adequada o trabalho desses profissionais.
Precisamos defender uma política estatal que valorize a cultura. No Brasil, já virou lugar comum dizer que a educação é a política pública mais importante do Estado, mas ainda é preciso incorporar a cultura como parte dessa mesma política. É preciso parar de criminalizar as leis de incentivo à cultura porque elas são fundamentais para promover as mais diferentes expressões artísticas, inclusive aquelas que ainda não gozam de um “mercado” caracterizado como tal.
Mesclar os acessos remotos com os espetáculos presenciais, remunerar adequadamente os artistas, compreender a cultura como parte fundamental da nossa identidade como seres humanos e como nação são alguns dos desafios que se fazem presentes.
Encerro fazendo menção a um luthier, dono de uma pequena fábrica de violões que me relatou ter vendido mais instrumentos durante a pandemia do que antes dela. Sem poder sair de casa e com a economia de tempo sem o deslocamento em grandes e conturbados centros urbanos, as pessoas passaram a dedicar mais tempo ao lazer e à cultura e muitas delas se dedicaram ao estudo da música e certamente de outras artes.
Fico aqui pensando, com uma ponta de esperança, na quantidade de artistas que florescerão desses tempos pandêmicos e sombrios que atravessamos, como que para reafirmar algo que já é um mantra para mim: só a arte nos salva!
* Marcos Barreto é economista e gosta de tocar violão nas horas vagas.
Ótimo artigo com uma linguagem clara e leve, agradável de ler. Retrata nitidamente nossa atual realidade. Parabéns!
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Obrigado pela leitura e observações, cara Marlene! O autor lerá e, desde já, agradeço as palavras e a gentileza! Continue apreciando os artigos!
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Obrigado pela leitura atenta e pelo carinho com meu texto, Marlene.
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Essa reflexão de Marcos Barreto, repleta de sensibilidade , emociona muito! Como musicista, agradeço e compactuo desse mesmo “mantra” e lema de vida!!!
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🌹🙏🏽
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