
É muito fácil falar como as outras pessoas deveriam ver o mundo. Ou agir. Talvez por isso exista tanta gente ganhando a vida oferecendo receitas e milagres. O terreno fértil do mercado das ilusões é amplo e parece não ter fronteiras. Uma hipótese que pode explicar – e reforçar isso – é simples: somos treinados historicamente para acreditar no ilusório.
Tirando o lado utilitário de tudo o que precisamos para sobreviver, viver e dar algum sentido à nossa existência, o resto é um emaranhado de construções mentais – que uns chamam de “sonhos e desejos”, outros denominam “realizações” e há até quem nomeie de “felicidade”. Não importa se são produtos que compramos, que nos são legados ou que tentam nos vender o tempo todo. Tudo cabe nas mesmas embalagens.
Antes que este texto passe a impressão de virar um amontoado de questões indiretas e desconexas, trata-se, na verdade de coisas concretas com as quais lidamos no nosso cotidiano familiar e nos projetos de vida – realizados ou não – de qualquer pessoa dita “normal”: ter uma casa, um carro, um emprego com alguma estabilidade, uma renda, uma família etc. E os desdobramentos dessas situações, tais como relacionamentos familiares, amigos, viagens, acesso a bens de consumo e “sucesso” na vida.
Pegando um exemplo prosaico desse processo de satisfação pessoal: alguém que “sonhe” alçar algumas das condições antes listadas e ache o máximo conseguir comprar uma casa/apartamento e um carro. Lembra um pouco aquilo que o icônico roqueiro brasileiro Raul Seixas descreveu na canção Ouro de Tolo: conseguir determinadas coisas na vida seria como achar que chegou a algum lugar e depois descobrir que tudo não passava de uma ilusão, pois nem sempre isso leva a felicidade, embora seja útil, interessante, faça a pessoa se sentir bem. Isso até ela se decepcionar com suas “conquistas”, como lembrou Raul.
Na prática, de modo bem seco, ter um carro significa: pagar caro por um conjunto de ferro e aço de três toneladas, que vem junto com boletos de IPVA, seguro, revisões, manutenção, pneus, combustível e outro itens – somada a uma fonte emissora permanente de poluentes. Mesmo que esse veículo seja sua fonte de renda, de certa forma seus custos ‘comerão’ parte daquilo que gerar. Isso vale até para o caminhão de trabalho do motorista profissional, ainda mais num país como o Brasil, do frete elevado, estradas ruins na média, longas distâncias e prejuízos garantidos em vários períodos.
A reflexão que se propõe aqui, meramente no campo filosófico, remete ao resultado que se espera de determinadas coisas e o que ocorre na prática: ter acesso a isso ou aquilo nos faz melhores, felizes ou acaba se mostrando algo inútil, ao fim e ao cabo? Quantos pontos de felicidade ou de satisfação são gerados com uma casa ou um automóvel zerinho, por exemplo? Quanto tempo leva essa tal felicidade da conquista? E aquele “emprego dos sonhos” de muita gente? Quando um cargo vira um inferno e a fonte de problemas de comportamento e até de saúde na nossa vida? São questões e mais questões que se pode enumerar, nesse sentido.
Grosso modo, todos nós sabemos, pela experiência, que as conquistas materiais e profissionais podem servir de apoio e de segurança à nossa vida, nos tiram do sufoco e nos livram de vários problemas, mas não são uma fonte inesgotável de soluções. Por um motivo muito simples: vivemos ciclos de satisfação, insatisfação, acertos e desacertos – conosco e com os que nos cercam. E nossas vidas não seguem uma linha reta. Nas curvas estão surpresas, mudanças, separações, doenças, morte na família, crises, perda das condições que perduraram durante muito anos etc.
Uma espécie de mecanismo de proteção mental natural nos faz imaginar e repetir internamente que a segurança que alcançamos – quando estamos vivendo isso por um longo período, suponhamos – é algo que não tem fim. Que sempre teremos isso à mão. Ou que ninguém nos tirará algo que “conquistamos” pelo nosso trabalho, por herança ou por direito. Aí vem algum acontecimento fora do roteiro – provocado por um ato nosso ou de outra pessoa com quem nos relacionamos – e muda tudo. O mundo desmorona.
No mais, não custa lembrar que a velhice, a decrepitude física, os sinais do corpo, do tempo e da existência se encarregam de operar mudanças que adiamos o máximo que conseguimos, mas que nunca deteremos, tenhamos quaisquer das condições que deram as caras no começo deste artigo. Ninguém escapa a esse destino – do pobre ao banqueiro. Os ricos, claro, se contentam com o estilo, o modo de vida, o acesso a tudo do bom e do melhor no seu ciclo de vida.
Mas não podemos negar algo: a condição humana parece alimentar essa ilusão na perenidade da existência, embora saibamos que a vida em si é um ciclo. Que muitos teimam em cobrir com tudo o que o universo ilusório oferece. E que uma hora cobrará seu preço. O custo é exatamente esse: descobrir que nada é eterno entre nós. Que seremos descartados pela vida num dado momento e, na prática, nossa pomposa existência será relegada ao esquecimento dentro de alguns anos.
Assim é a vida e ninguém escapa do seu fim. Queira ou não queira. Concorde ou não com isso.
Por fim: quanto custa manter cada ilusão das tantas que nos fazem atribuir poderes às coisas? Cada um sabe calcular isso. E só a essa pessoa cabe carregar o peso de suas escolhas e o “preço a pagar” por cada uma delas.
Ler os artigos de Djair Galvão é sempre agradável!
Nos leva à reflexão!
Raul Seixas adequadamente citado nesse contexto.
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Obrigado, Marlene! Leitora atenta! Abraço!
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