
Diz a lenda que “o esporte preferido do brasileiro é reclamar”. Falsa ou exagerada, é bom que se destaque que reclamação não é atributo tupiniquim e que a defesa do que cada pessoa considera um direito começa pela liberdade de se manifestar sobre as coisas que interpreta como incorretas. Mas, convenhamos, temos compatriotas exagerando. E muito. Basta morar em edifício com condomínio e todo mundo sabe muito bem como é conviver com reclamações de toda ordem. É um festival.
As pessoas reclamam de praticamente tudo, seja no prédio ou na cidade – quiçá no planeta: do ar, do frio, do calor, do vento, da chuva, de quem fala ou fica calado; do trânsito, do silêncio, da comida, do gosto, do cheiro; das roupas alheias, sapatos, cabelos; dos mais variados aspectos que consideram estranhos (nos outros); do bar, restaurante, da casa do vizinho, das suas filhas e filhos; dos cachorros do bairro; dos pedintes nas ruas, das pessoas morando em barracas de lona ou de papelão, mas não quem saber como elas vieram parar ali e nem o que poderia ser feito para ajudá-las a deixar aquela vida.
O festival de insatisfações, de um modo geral, começa em casa, mas não tarda a ganhar as ruas. Lembro de ter lido, no noticiário, que pessoas estavam “incomodadas”em São Paulo com “o canto de pássaros” que acontecia cedo, pela manhã, numa determinada praça de um bairro paulistano. E não é exagero esse tipo de relato: eu mesmo presenciei, anos atrás, uma cena inusitada num restaurante de classe média na capital paulista. O garçom comunica o cliente a falta do ‘limão siciliano’ e recebe uma baita bronca do distinto jovem que sequer prestava atenção no temor de quem lhe servia à mesa. E se diz indignado que aquela variedade cítrica era a única que seu paladar admitia etc etc etc.
Na seara das reclamações coletivas, nada é mais divertido do que uma passada pelos sites de classificação de turistas sobre hotéis, pousadas ou restaurantes que estes frequentaram em suas viagens. Entre escárnio e absurdos, encontra-se de tudo: do cara que não suporta ter TV de tal tipo na acomodação ou que não exibe o jogo desejado por ele; da mulher que queria o chuveiro a tal temperatura; de todos os tipos de comidas servidas no café, almoço, lanches e jantares; da iluminação e do aspecto dos quartos, camas, travesseiros, colchas e até das cores das paredes. De hotéis e de motéis. Um amigo relatou que um casal reclamou de um motel, onde supostamente teria ido para comemorar alguma data festiva e transar. O motivo da insatisfação? Não dava para ver o jogo ou a novela na TV disponibilizada pelo estabelecimento. Novela e futebol no motel…
Supõe-se, dentre outros problemas, que a excessiva carga de reclamações banais decorra de insatisfações pessoais de quem as manifesta compulsivamente – indo muito além do sagrado direito de reclamar de um serviço que deveria ser prestado conforme o anunciado ou. pactuado. Ninguém deveria ou deve advogar a favor de quem ludibria clientes e presta serviços ou vende produtos com defeito ou problemas, mas sempre é possível perceber que as pessoas costumam extrapolar desse direito. E, quem sabe, a falta de noção da realidade, uma dose a mais de cinismo, falta de educação ou de compostura, bem como excesso de ‘mimo’ até contribua para piorar o comportamento de determinadas pessoas em situações como as descritas até aqui.
Também não é incomum notar que, no geral, muita gente se comporta como uma espécie de Reclamador Geral da República, mas finge não notar problemas graves no bairro, na rua ou no local de trabalho. Deixa passar, sem qualquer manifestação contrária, aumentos abusivos nos preços dos combustíveis, de tarifas de energia, crescimento galopante dos índices inflacionários, subida descontrolada dos preços dos alimentos, dentre outros problemas reais que afetam todos nós. Existe, de fato, uma seletividade no que abordar e opinar contra e aquilo que pode ser deixado de lado, como se não existisse. A velha conveniência. Ou conivência.
Certos ou errados, todos nós temos uma queda por esse antigo esporte. Talvez o que nos falte seja um pouco mais de humildade para olhar para os lados e perceber que nem tudo o que consideramos digno de uma boa reclamação é, concretamente, um problema real, pois podemos apenas estar exercendo a mania de reclamar de tudo e de todos, quando quem realmente está sofrendo horrores tem tudo para reclamar e, na prática, engole seco por inúmeras questões de classe, de posição social etc.
Afinal, rico e banqueiro, no Brasil varonil, é quem menos paga imposto (ou nem paga, em grande parte) e mais reclama “dos impostos excessivos”cobrados de cidadãos e cidadãs. E depois saem fingindo que não é como eles quando alguém reclama das tarifas, trapaças e outros problemas que a maioria enfrenta quando vai aos bancos, por exemplo.
Seletividade é um truque. E funciona que é uma beleza por estas bandas.