
Por Belmires Soles Ribeiro *
A expressão “O estalo de Vieira” foi muito popular em gerações passadas, principalmente no Nordeste brasileiro, a significar o indivíduo obtuso, de limitada inteligência, com dificuldades na aprendizagem, mas com grande dedicação ao estudo que, num átimo, sem explicação plausível, numa espécie de epifania, e após sentir um estalo na cabeça, como se fosse desfalecer, é acometido de um clarão mental súbito.
Abrem-se-lhe, a partir de então, os portais da sabedoria, a desnudar o que antes lhe parecia indecifrável, a facilitar-lhe o entendimento dos mistérios das Humanidades e das Exatas.
“De aluno medíocre, o menino passou a um dos estudiosos mais capazes. Desapareceram os problemas de memória que tanto o atormentavam”.[1]
Reza a lenda que o personagem de tal fenômeno teria sido o inolvidável Padre Antônio Vieira (1608-1697), jesuíta que tantas lutas empreendeu em nosso país e fora dele, em prol da cristianização dos povos e contra a escravização indígena e negra, sendo ainda considerado um dos próceres da língua portuguesa, com elegância vernacular que serviu de paradigma a tantos escritores lusófonos. Fernando Pessoa, admirador da escrita do jesuíta, cognominou-o de “Imperador da Língua Portuguesa”.
Curioso é que Rui Barbosa narra lenda semelhante, envolvendo um padre espanhol, Suárez, sobre o abrir-se a inteligência ao conhecimento até então inalcançável, à custa de oração e trabalho:
“De cinquenta aspirantes que, em 1564, solicitavam em Salamanca, ingresso à Companhia de Jesus, esse foi o único rejeitado, por curto de entendimento e revesso ao ensino. Admitido, todavia, a insistências suas, com a nota de “indiferente”, embora primasse entre os mais aplicados, tudo lhe eram, no estudo, espessas trevas. Não avançava um passo. Afinal, por consenso de todos, passava por invencível a sua incapacidade. Confessou-a, por fim, ele mesmo, requerendo ao reitor, o célebre Padre Martín Gutiérrez, que o escusasse da vida escolar, e o entregasse aos misteres corporais do irmão coadjutor. Gutiérrez animou-o a orar, persistir e esperar. De repente se lhe alagou de claridade a inteligência. Mergulhou-se-lhe, então, cada vez mais no estudo; e daí com estupenda mudança, começa a deixar ver o a que era destinada aquela extraordinária cabeça, até esse tempo submersa em densa escuridade” [2].
Na verdade, o que se extrai é que ao trabalho intelectual dedicado e à fé nada resiste. Bem assinala Rui Barbosa: “Já vedes que ao trabalho nada é impossível. Dele não há extremos, que não sejam de esperar. Com ele nada pode haver, de que desesperar.”
Mas, por falar em Vieira, há que sempre enfatizar a vida ativa e aventurosa desse padre, que passou grande parte de sua existência no Brasil, e se tresdobrou em pregador, escritor, e político/diplomata, bastando pinçar alguns fatos para que a sua grandeza histórica aflore com todo o viço, restando a imagem exemplar de alguém que nunca se curvou aos poderosos na defesa de seus ideais.
O meio de que se valeu para expressar suas ideias e impulsionar suas lutas foram as homilias dominicais na celebração da Santa Missa, que constituíram os famosos “Sermões“, até hoje tidos como padrões da Última Flor do Lácio, a nossa rica língua portuguesa, tanto na forma como no conteúdo humanístico de que se revestem.
Dentre tantos sermões de excelsa qualidade de sua lavra, cerca de 200, exponencia-se o Sermão da Sexagésima, tido como um dos mais profundos e duradouros, proferido em março de 1655 na Capela Real de Lisboa, e que constitui um dos mais festejados da extensa obra de Vieira. Trata-se de um sermão que versa sobre a própria arte de elaborar sermões, partindo da questão primacial de que “sendo a palavra de Deus tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?”, de quem seria a culpa: do pregador, do ouvinte ou da própria mensagem? Após aprofundada análise, conclui que somente ao pregador pode ser imputada a culpa, pela sua inépcia ao transmitir as verdades bíblicas. Não bastam belas palavras, é preciso o exemplo, sublinha Vieira: “Ter o nome de Pregador, ou ser pregador de nome não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo.”
Passa a desenvolver, então, metodologicamente, formas de fazer com que os sermões atingissem o desiderato de arrebanhar, e manter, discípulos de Cristo. Metodologia essa de espantosa atualidade, a servir como parâmetro, ainda nos dias hodiernos, para profissionais que se dediquem ao trato com o público, tais como magistério, jornalismo e advocacia, dentre outros.
Apesar de sua profunda religiosidade, Vieira nunca perdeu o senso pragmático, e verberava contra a chamada Santa Inquisição – órgão da Igreja que investigava atos de heresia – pela expulsão dos judeus que, com seu histórico empreendedorismo, capitanearam a grandeza portuguesa da época dos Descobrimentos. Após sua rejeição, semitas portugueses expulsos dirigiram-se e se fixaram na Holanda, que os recebeu com oportuna tolerância, emergindo como grande potência marítima, ao tempo em que Portugal declinava.
De sua insurgência contra excessos da Santa Inquisição resultou-lhe a condenação por supostas heresias, tendo ficado enclausurado, por dois anos e três meses, em um aposento em que tinha como únicos companheiros a Bíblia, uma cama e uma mesa com um banco.
Acabou recebendo a anistia de sua pena, pelo próprio Papa, ante a clamorosa injustiça que lhe fora infligida.
Sempre combateu de forma intimorata os corruptos; sim, já naquela época abundavam, acutilando-os com assertivas que parecem amoldar-se até aos dias de hoje:
“Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros roubam debaixo de seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados. Estes furtam e enforcam”.
Quando atuava no Nordeste, arrostou os colonos portugueses que desejavam escravizar os índios no Maranhão, de onde acabou sendo expulso pelos senhores de escravos que temiam a difusão de suas ideias libertárias.
Conseguiu retornar ao Brasil, onde morreu, na Bahia, aos 89 anos. Refletindo sobre as lendas de supostas epifanias de Vieira e Padre Suárez, certamente que muitos de nós também, em algum momento da existência, à custa da fé e de muito labor intelectual já tivemos os nossos “estalos”, quer no entendimento das ciências, quer da vida em si mesma.
* Belmires Soles Ribeiro – Procurador de Justiça no Mato Grosso do Sul/MS.
[1] In Vieira Antônio, Padre, Ed. José Olympio,Clovis Bulcão, p. 28
[2] Rui, 667