
A diretora de cinema Céline Sciamma subverteu códigos de tratamento dispensados a crianças no filme Pequena Mamãe, produção francesa lançada em 2022, ao usar, de modo deliberado, elementos típicos da transversalidade. A história das meninas Nelly e Marion, ambas de 8 anos, fala de uma liberdade negada à infância, cuja tutela adulta existe mais para distorcer, castrar e oprimir do que para ajudar na construção de personalidades autônomas.
A película integrou o Ciclo de Cinema e Psicanálise, no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, no dia 5 de julho, seguida de debate conduzido pela psicanalista Luciana Saddi com a participação de Gizela Turkiewicz (psicanalista) e Ieda Marcondes (jornalista e crítica de cinema do jornal Folha de S. Paulo). Prestigiei o evento e, durante o debate, o público e o trio de debatedoras levantaram questões como as que abordei acima e outras que vou explorar a seguir neste artigo.
No aspecto transversal, a intenção de Sciamma é clara: liberdade, curiosidade, papéis “adultos”, temas de “gente grande”, contato com a morte, o luto, questionamentos sobre os lugares de pai, mãe e autonomia infantil se entrecruzam o tempo inteiro. Deveriam ser cláusulas pétreas do relacionamento entre adultos e crianças. Isso porque os pequenos observam e lidam com o mundo, em geral, de forma mais equilibrada do que a maioria dos pais e os mais velhos.
As escolhas feitas pela diretora conduzem o espectador a observar atentamente o que levaria adultos a não se preocuparem tanto com duas meninas fazendo e acontecendo dentro de uma casa, como na cena em que Nelly e Marion preparam crepes na cozinha, sozinhas, misturam ingredientes, jogam comida pela pia e emporcalham a mesa. Ou quando ambas pegam um bote inflável e se aventuram por um lago localizado na floresta onde ficam as casas de ambas. O momento do “nojinho” também foi intencional, pois é uma referência a um comportamento infantil para satirizar a obediência a pais e tutores: as meninas tomam sopa e “cospem” de volta no prato, rindo muito. Quem nunca, né?
Ao trabalhar simbolismos mágicos da construção de uma cabana pelas duas meninas, Céline Sciamma remexeu com medos de crianças e adultos, acrescentando o elemento da “floresta” – como numa remissão à presença recorrente desse ambiente nos contos de fadas, a sua maioria passada em lugares ermos, como nos tempos medievais ou perdidos no tempo. Ela também não deixou de lado o que seria um ritual de passagem numa cena em que as amigas de vizinhança – que embutem, na verdade, mãe e filha na sobreposição das personagens adultas nos tempos de criança – passeiam sozinhas, de bote pelo lago ermo, entram e saem de uma estrutura que parece uma pirâmide. Elas saem mudadas do outro lado da pirâmide, e o momento é o único em que a diretora usa trilha sonora no filme. “Puramente intencional”, ressaltou a crítica de cinema Ieda Marcondes. A ideia era evitar comoção excessiva, o que atrapalharia a narrativa intensa e focada na personalidade das gurias.
Adultos são simplesmente gente crescida no filme. São frágeis, cheios de problemas, não sabem muito bem como lidar com questões que as meninas tiram de letra em seus pequenos devaneios reais. A morte e a dor foram meio que sublimadas pela dupla cativante de amigas num teatrinho imaginário no qual elas são homem, mulher, marido, inspetor e mãe. Essa mistura é uma ode à liberdade de imaginação infantil como nunca vi em produção alguma até hoje.
A transversalidade da temática mexe com afetos, medos, sonhos, perdas e risos, enquanto coloca os adultos em pé de igualdade com as crianças. Presença e ausência são preenchidas por brincadeiras. As perdas viram uma receita na cozinha. A floresta e o bote podem muito bem simbolizar que elas sabem o que querem e não temem os perigos que os pais não querem que seus filhos corram num mundo selvagem e complexo como o que vivemos. Saem os excessos de proteção, as ilhas de edição da vida infantil e entram a chuva, a mata imensa, a cabana e as casas das meninas, cuja “duplicidade” intencional visa informar que ambas são mãe e filha, em momentos diferentes da trama.
As debatedoras Gizela Turkiewicz e Ieda Marcondes acrescentaram elementos de suas vivências e análises na interpretação do filme, em particular os aspectos relativos ao ambiente adulto em contraposição ao modo como crianças interpretam o mundo nesta fase da vida e as escolhas feitas pela diretora para mostrar as meninas como protagonistas e não meros enfeites fofinhos de cinema – ou pequenos birrentos -, como é comum em películas que tratam da infância e de adultos.
Por fim, podemos deduzir que a diretora abdicou de usar de linguagens de violência ou força, típicas do cinema norte-americano, para propor um olhar mais terno, autônomo e verdadeiramente honesto sobre a infância. É ver e se apaixonar. E, quem sabe, descobrir mais e mais elementos na trama.
O filme Pequena Mamãe está disponível na plataforma Prime Video, da Amazon (link aqui).