
Ninguém talvez discorde que viramos reféns das nossas próprias escolhas no campo da informação. Ao mesmo tempo, vivemos o que os especialistas chamam de ‘era da desinformação’. A aparente contradição entre essas duas coisas é bem menor do que se possa imaginar. Traduzindo: queremos saber sempre mais e ficamos até o pescoço com tanta coisa para ler, ver, olhar e comentar. E somos tragados por armadilhas espalhadas ao longo do caminho pelos que trabalham distorcendo informações, notícias, fotos, vídeos e análises, principalmente por meio das redes digitais que usamos o tempo inteiro.
Quem nunca acordou no meio da noite e não foi direto ao smartphone ou mesmo ao tablet e notebook para “conferir as últimas notícias” ou buscar por fofocas no mundo virtual? Passamos a integrar uma gigantesca legião de humanos com crescente ‘ansiedade informacional’, o que afeta o sono, o humor, mexe com o nosso organismo e nos afeta mentalmente. Em muitos casos, o tempero desse carrossel de informações é nada menos que o mercado das chamadas fake news – que são melhor entendidas no contexto da desinformação ou da distorção desta em níveis alarmantes. Tem a ver, claro, com a popularização da internet, o uso massivo dos aparelhos celulares e outros equipamentos que nos conectam às redes, grupos de informação etc.
“O Brasil tem atualmente mais de um smartphone por habitante, segundo levantamento anual da FGV. São 242 milhões de celulares inteligentes em uso no país, que tem pouco mais de 214 milhões de habitantes, de acordo com o IBGE. A pesquisa mostra ainda que, ao adicionar notebooks e tablets, os aparelhos resultam em 352 milhões de dispositivos portáteis, o equivalente a 1,6 por pessoa”, diz um trecho de matéria do portal Olhar Digital, especializado no tema das novas tecnologias e seus impactos no mercado e na vida das pessoas (veja aqui a matéria completa).
Somos também o país campeão em participação nas principais plataformas de mídias sociais, notadamente Facebook, Instagram, Twitter e Telegram, só para citar as mais populares. E, pelo número expressivo de dispositivos portáteis em nossas mãos, somos uma grande fatia no conjunto dos que acessam o principal mecanismo de comunicação instantânea, o WhatsApp.
O que isso – entre dados robustos e crescentes – tem a ver com a discussão iniciada no começo deste artigo acerca do processo de ansiedade que vivemos e para o qual, aparentemente, não temos uma saída no horizonte? Grosso modo, quanto mais gente com um aparelho portátil em mãos, mais circula informação (ou desinformação), mais se busca, mais se disseminam teses, ideias, notícias, memes, recortes da realidade e, por fim, o círculo vicioso da dependência nunca cessa. Mal você entra num emprego, muda de cidade, de prédio, de condomínio residencial ou de comunidade, logo é convidado (a) a integrar um “grupo de WhatsApp”. Pode ser da rua, da escola, do trabalho, da igreja, do sindicato, do partido, do time, da loja, do supermercado, da vendedora de tupperware etc etc etc.
É um mundo infinito, e se você não der um basta, pode contar que fará parte de dezenas ou até de centenas deles. A título de exemplo, lembro-me de alguém mostrar, no telefone, que em dado momento estava com 600 mensagens “ainda não lidas” nos diversos grupos dos quais participava – justamente eu que não participo de nenhum, por escolha pessoal e porque tento com isso manter o mínimo de sanidade mental.
Puxar o fio dessa discussão, como vimos, é mexer num vespeiro que desperta paixões, percorre caminhos entre a Psicologia, a Psicanálise e a Filosofia e se espraia por diversos ramos do comportamento. Pode dizer respeito às necessidades criadas pela era digital, isso é óbvio, pois significa mais agilidade na comunicação entre setores de uma empresa, de um escritório de advocacia, de uma escola ou mesmo entre jornalistas, grupos de pesquisa, estudantes, professores, pais, grupos da segurança pública e outros. São benefícios inegáveis e que não temos como evitar diante da crescente sociedade em redes na qual vivemos.
O que se procura alinhavar aqui tem ligações com o universo da saúde mental, da quantidade e, necessariamente, da qualidade da informação que se consome ou se passa adiante segundo a segundo, dia após dia em nossos mundos virtuais. Se fosse um garimpo, o melhor caminho seria buscarmos a proteção em mecanismos de checagem de tudo aquilo que recebemos ou buscamos o dia todo. Ou, sendo mais radical e direto, tentarmos nos livrar da dependência que criamos hoje desses e de tantos grupos de contato que temos. Isso é escolha pessoal e cada um resolve o que fazer com sua vida, suas escolhas e necessidades. Eu, em particular, vejo como questão de sanidade e de busca de equilíbrio básico, mesmo sendo consumidor voraz dos produtos noticiosos e afins.
Pensemos o seguinte: quanta gente que conhecemos não mudou de comportamento, tornando-se até agressiva após o contato diário e sem limites de “informações” nos grupos familiares ou de trabalho do WhatsApp ou do Telegram? Uma coisa é você necessitar e usar essas ferramentas para trabalhar, trocar informações, discutir temas relevantes e ampliar o acesso ao conhecimento. Outra, entendo, é isso virar uma fonte de distorções e – até certo ponto – geradora de comportamentos agressivos e criminosos. Não é novidade para ninguém o uso de redes para o incentivo ao cometimento de crimes, lá fora e aqui no Brasil. Os acontecimentos trágicos do dia 8 de janeiro em Brasília, com a invasão e depredação das sedes dos 3 Poderes por grupos de extremistas políticos, tiveram, seguramente, forte influência de redes de desinformação e de mecanismos infiltrados na política, nos negócios, em diversos agrupamentos partidários e ideológicos para que fossem levados a cabo. São armadilhas desse tipo que nos aguardam quando temos necessidade excessiva de consumir informação a qualquer custo, sem observar de onde vem, quem nos traz isso ou quais interesses estão por trás de cada uma delas.
Por fim, essa ‘ansiedade informacional’ parece também ancorada numa ilusão destes nossos tempos: precisamos “opinar” sobre tudo e sobre todos. Mesmo que nossas “opiniões” não tenham a menor importância, não mudem nada ou sejam, na prática, totalmente imprestáveis (tecnicamente, juridicamente e politicamente), uma vez que estão sob forte distorção. As pessoas, me parece, querem “saber mais” para falar sobre o que entendem e, mais especificamente, sobre aquilo que não têm a menor ideia. E tome gente falando sobre guerras, armas nucleares, trânsito, licitações, tráfico de drogas, segurança pública, corrida espacial, novas tecnologias, educação sexual, vida alheia, governança, inflação, juros, partidos, igrejas, sindicatos e tudo o mais. A partir de quais fontes e de quais mecanismos isso começa?
A pergunta acima diz muito do que está no começo da discussão aqui posta, cujo fio é apenas um dentre tantos possíveis. O fato é que a nossa saúde mental pede que tomemos atitudes que mudem nosso comportamento diante da avalanche de informações, em matéria de quantidade de qualidade destas. Ou vamos abarrotar mais e mais os consultórios dos analistas – isso aqueles que tiverem condições de pagar quem os analise, pois até os analistas, certamente, sentem necessidade de ajuda nesse campo.
Estamos pisando em terreno minado e ninguém tem a resposta completa para isso. É um dilema que vamos, em algum momento, buscar meios de superação. Que podem vir daqui a muitos anos. Ou piorar muito até que encontremos as primeiras saídas.
Ou seremos condenados a viver como reféns disso tudo?