
Dia desses, puxei pela memória uma viagem de cerca de um mês que fiz a Porto Velho, capital de Rondônia, no longínquo ano de 1988. Fui a passeio, por mera curiosidade, visitar um irmão (recentemente falecido) e alguns amigos que moravam lá. Vivi experiências curiosas e tomei pé de uma realidade que conhecia de ouvir falar, de reportagens, da televisão ou de conversas com pessoas que já haviam viajado pela região Norte, incluindo áreas indígenas na região Amazônica. Nada aprofundado. Algo marcante foi saber que naquelas bandas se desenrolava uma “corrida do ouro”, expressão que remetia às reminiscências do Velho Oeste dos Estados Unidos, por meio do cinema e de revistas como Tex e outras do gênero faroeste.
O fio que puxou essas lembranças foi a dramática situação dos povos Yanomami, as revelações sobre ações criminosas do garimpo ilegal naquela e noutras terras indígenas, a ocupação de terras, a grilagem e demais desdobramentos que seguem pautando o noticiário e os debates entre ambientalistas, agentes do novo governo e diversos setores da sociedade. Foram acrescentados elementos que já eram alvo de reportagens, denúncias de ativistas e ações da Polícia Federal e do Ministério Público, pelo menos desde 2019, quando o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro fez o que seriam “vistas grossas” – e até teria incentivado a ocupação e atividades ilegais nesses territórios.
Ao longo dos dias, consultei diversos veículos que cobrem a região Amazônica, enquanto acompanhava as reportagens que traziam novidades sobre o que se classifica como processo de genocídio cometido durante os últimos anos contra essa etnia, uma das mais isoladas e complexas para nossa compreensão enquanto citadinos e de regiões distantes, como o Sul e o Sudeste.
Dos diversos veículos de mídia regional, o destaque que faço é para dois portais. O primeiro deles é o Sumaúma, baseado em Altamira (PA), região do Alto Xingu, liderado pela jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum. Sobre o tema levantado, reproduzo um trecho de reportagem acerca da invasão e dos crimes do garimpo ilegal, da extração de madeira e tráfico na região. O texto, assinado pela jornalista Talita Bedineli, tem o título ‘Nossas vidas acabaram’: sexo por ouro, alcoolismo e doenças. As aldeias Yanomami destruídas pelo garimpo.
“BOA VISTA, RORAIMA | A invasão criminosa do garimpo na Terra Indígena Yanomami, sob a anuência e o estímulo do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro, destruiu profundamente aldeias inteiras. Não estragou apenas os rios ou a mata, mas desestruturou uma cultura com comunidades que até pouco tempo atrás não tinham sequer visto um homem branco pela frente e viviam em harmonia com a floresta, de onde tiravam seu sustento –e nada mais” (veja a matéria completa aqui).
O segundo portal, cujo conteúdo também é temático sobre a região, é o Amazônia Real, criado e mantido pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias, com sede em Manaus (AM). A página existe desde 2013, mas ganhou espaço maior nos últimos anos, com a intensificação da cobertura sobre questões climáticas, invasões de terras e atuação dos garimpos. A propósito, recuperei uma reportagem especial da equipe do Amazônia Real, de 2021, cujo título remete a minhas memórias quando visitei Porto Velho e ouvi conversas sobre a “corrida do ouro” naquela área: Nova corrida do ouro ilegal leva 1,8 mil homens ao Rio Madeira, na Amazônia. De fato, estive inclusive num “passeio de barco” pelo Rio Madeira, que banha a capital rondoniense. A reportagem, no caso, não trata de turismo, e sim de invasão de terras por garimpo ilegal durante o governo Bolsonaro (clique para ler o texto).
As conversas a que me referi acima foram captadas por mim em 1988, durante aquele mês em que perambulei, na condição exclusivamente de curioso, pela antiga Porto Velho, então uma cidade empoeirada, diferente para meus padrões dos municípios brasileiros que conhecera até aquela época. Nas andanças por bares e restaurantes do município, muita gente falava de garimpo, de ouro e da vida na exploração de minérios, no caso em Rondônia. Conheci, vagamente, o comércio de compra e venda de ouro na principal avenida da capital, chamada 7 de Setembro. Eram muitas “lojas” de compra e venda do metal, a maioria com um ir e vir de homens vestidos modestamente, com suas botas, chapéus e cinturões que hoje atribuímos aos “sertanejos” (do ramo musical) – que aliás já era o estilo de música dominante naquelas terras.
Não estava, na realidade, em busca de informações ou colhendo material para reportagem ou qualquer trabalho jornalístico, e sim vivendo como um curioso, numa espécie de período sabático por aquele pedaço da Amazônia. Tive até a oportunidade de matar a curiosidade e conhecer Humaitá, no Amazonas, que fica a algumas horas de carro desde Porto Velho. Fui ver de perto a lendária “rodovia Transamazônica” que, para minha surpresa, não passava de uma estrada de terra enlameada, com trechos estreitos de via, cercados de floresta por todos os lados. Estes e outros relatos que colo aqui são meros recortes de memórias quando daquela viagem.
Voltando o olhar para o que chama a atenção do mundo e do Brasil, temos uma realidade cada vez mais complexa se descortinando, quanto mais a mídia explora o drama dos Yanomami e os órgãos de fiscalização do atual governo se embrenham em investigações ou por meio de ações da Polícia Federal, do Ministério Público, do Ibama, do ICMbio e de outros órgãos da área ambiental. Não raro, aparecem informações sobre os interesses que moviam a “corrida do ouro” empreendida em anos recentes a terras indígenas, cuja aceleração ocorreu por meio de incentivo aberto do presidente que deixou o poder em dezembro de 2022.
Uma reportagem do portal G1, de 15 de fevereiro de 2023, traz o resultado de ações policiais que miram o garimpo ilegal. Com o título Operação da PF mira contrabando de ouro ilegal da Amazônia para o exterior e bloqueia R$ 2 bilhões de suspeitos, a cobertura da investida da Polícia Federal sobre o comércio de ouro na região amazônica segue um fio em meio à dispersão, destruição de maquinário e desmonte de inúmeros focos de garimpo em terras indígenas, em especial na área Yanomami. Para ler a matéria, clique aqui.
Embora a realidade fosse outra quando da minha viagem por Rondônia em 1988, o assunto “contrabando de ouro” me soou como algo familiar, pois ouvira regularmente histórias da compra, venda e transporte do precioso metal para São Paulo e outras regiões do Brasil nas conversas de botequins com moradores locais. Por óbvio, não tenho elementos de prova, mas recordo que não havia segredo sobre interesses de empresas e garimpeiros, supostamente protegidos por agentes federais, principalmente quando era necessário “levar o ouro” para fora de Rondônia. A reportagem citada me fez lembrar de mais essa passagem.
Também era comum, e o tempo mostrou isso ao longo dos últimos anos, a maneira como a exploração e o comércio de madeira ilegal se tornara algo rentável e que atraía o interesse de empresários do ramo, de políticos e de autoridades da região. Foi outra coisa com a qual tive contato esporádico naquela passagem por Rondônia, entre tragos, viagens pela Rodovia 364 (Cuiabá-Porto Velho) e leituras despretensiosas na mídia local de então.
Poderia ficar puxando pelo fio de memórias mais alguns parágrafos, mas a intenção aqui era registrar o encontro de fatos do passado, meramente fortuitos no caso da minha viagem, e o mundo real que foi ganhando espaço à medida em que as estruturas de poder se sucederam na região Amazônica, os interesses cresceram, os índices de desmatamento subiram vertiginosamente e, claro, chamaram a atenção do mundo, o que culminou com o drama humanitário vivido pelo povo Yanomami.
De fato, aquele pedaço do Brasil que visitei em fins de 1980 mudou muito. Depois, nunca mais tive a oportunidade de voltar à região Amazônica, seguindo como mero espectador da realidade, via meios de comunicação e, mais recentemente, pelo acelerado processo de cobertura proporcionado pela internet, pelos portais locais e a ampla presença de ativistas do mundo inteiro, de olho na Amazônia – enquanto o olhar do mundo nunca saiu dessa esfera.
Amplia-se, assim, a lupa que o país precisa usar para cuidar melhor da sua biodiversidade, impedir o avanço do crime organizado naquela região e apoiar a existência e a sobrevivência digna das populações locais. Para tanto, o Estado precisaria estar mais presente, forte, ágil e, sobretudo, disposto a combater os interesses particulares predatórios numa área vasta e com riquezas que sequer temos noção do tamanho e dos valores. Caso contrário, perderemos todos essa riqueza única.