Entre Paulo Freire e Saramago

Fotomontagem: reproduções

Um pouco mais de ano, mais de 5.900 quilômetros de distância, países e realidades distintas separaram as histórias da vinda ao mundo de duas personalidades marcantes do século passado: o brasileiro Paulo Freire e o português José Saramago. Freire completará 100 de nascimento em setembro próximo e em novembro de 2022 será a vez de Saramago.

Existem mais proximidades entre ambos do que se possa imaginar, embora em contextos diversos, notadamente influenciados pelos momentos turbulentos registrados na economia mundial entre o final dos anos 1920 – com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York – e as consequências sentidas em boa parte da década de 1930.

A Grande Depressão os pegou com as famílias fragilizadas. Ainda jovem, o futuro ganhador do Nobel de Literatura (de 1998) foi serralheiro mecânico, tendo antes sido obrigado a deixar a escola por problemas financeiros em casa. Paulo Freire se virou como assistente de professor para garantir o sustento e saciar sua sede de aprender. Ambos tinham outro ponto em comum: uma curiosidade precoce pelo conhecimento e pelos livros.

Freire e Saramago, com o passar do tempo, beberam em fontes diferentes para chegar a caminhos mais ou menos parecidos em matéria de formação profissional e política.

O brasileiro, marcado pela experiência infantil da fome, se identificou muito cedo com os mais pobres. Passou a estudar maneiras de levar adiante o conhecimento que adquirira – o que mais tarde foi crucial para o desenvolvimento do método de ensino que levaria seu nome – e que até hoje é considerado um dos mais revolucionários mecanismos de combate ao analfabetismo pelos círculos acadêmicos e governos do mundo inteiro.

Saramago se viu no serviço público, ofício que exerceu durante vários anos de sua vida, mas tinha o olhar voltado mesmo para a literatura, se virando também como tradutor das obras de Hegel para reforçar os rendimentos. Mesmo tendo publicado seu primeiro livro aos 25 anos, considera-se que nasceu para o mundo literário tardiamente, por volta dos 59 anos, quando foi obrigado a deixar o setor público e resolveu se dedicar integralmente ao jornalismo e à literatura.

Politicamente, Paulo Freire e José Saramago passaram parte do seu tempo sob a mira de regimes de exceção. O pernambucano Freire, cuja formação acadêmica deu grandes passos a partir dos anos 1940, desenvolveu o processo de alfabetização que o levaria a ser perseguido pela ditadura militar brasileira, indo para o exílio após o golpe de 1964 – que viu nas suas experiências revolucionárias o “perigo comunista”.

É possível identificar os entreveros de José Saramago com o regime de exceção salazarista (1933-1975) em Portugal, durante seus anos mais duros, através de dois romances de peso na carreira do escritor: Levantado do Chão (1980) e Memorial do Convento (1982). Também entram na conta das críticas mordazes dele à interpretação “oficial” da história os livros O Ano da Morte de Ricardo Reis (1985) e A Jangada de Pedra (1986).

Não é obrigatório listar os demais sucessos literários de José Saramago, pois todo mundo sabe – pelo cinema ou pelos livros – de histórias criadas por ele em Ensaio Sobre a Cegueira (1995) e O homem duplicado (2002), dentre tantos. E deixou uma obra polêmica, criticada por gregos e troianos no mundo religioso: O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) – esconjurado pela Igreja Católica de Portugal – virou obra “non grata” por muito tempo.

Exímio escritor, Paulo Freire ganhou ainda mais prestígio após se exilar e ver popularizado seu Método Paulo Freire, reconhecido, estudado e utilizado pelas mais tradicionais universidades do planeta e em diversos países para alfabetização de forma rápida e crítica. É dele uma frase lapidar acerca do processo educacional: “Quando a Educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”, o que encerra parte do arcabouço teórico do que passou a ser conhecido como Pedagogia do Oprimido – também um dos seus livros mais traduzidos e estudados em todo o mundo.

De estudiosos reconhecidos nas esferas acadêmicas e literárias, as posturas políticas de Freire e Saramago – e suas ligações com os movimentos populares da esquerda mundial – sempre conheceram adversários e inimigos ferrenhos nos ambientes conservadores e mais atrasados no século 20.

Todavia, o modo como construíram algumas das obras mais importantes do século passado, que até hoje guiam movimentos populares, gerações de educadores, pensadores, leitores e críticos ao redor do mundo, faz com que sejam figuras imortais do ponto de vista do afeto das sociedades onde viveram.

Paulo Freire e José Saramago carregaram por toda a vida o humanismo como bandeira, aplicando-o em seus discursos, práticas, obras e na participação política em seus países, cada qual no seu tempo. Eles são como as pedras e formações rochosas moldadas pela ação do tempo: gerações e gerações saberão da sua existência e do que representaram para o mundo.

É bom frisar que este artigo seria pretensioso se fingisse se passar por uma leitura das obras de Freire e Saramago. Falo na condição de mero leitor, curioso, pupilo e admirador.

Um comentário sobre “Entre Paulo Freire e Saramago

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