Opinionismo, a ‘ciência oculta’ das redes

Uniformização da opinião e do pensamento com as redes? /Reprodução

Anos atrás, conheci uma forma jocosa que serviria bem para tratar da insistência atual de se querer imprimir suposta cientificidade a todo tipo de teoria, conspiração ou afirmação que se multiplica, principalmente via mídias (ou redes) sociais. Seria o equivalente a dizer, em tom irônico, que a pessoa que opina sobre tudo e sobre todos fez doutorado em “ciências ocultas e letras apagadas”.

Tirando a ironia, ganha ares de consenso a suspeita de que vivemos sob o império do opinionismo, fenômeno ainda em estudo por especialistas em várias partes do mundo. Essa constatação embute o debate acadêmico sobre um tipo de ‘vandalização’ da comunicação a partir do falseamento das informações, da sua manipulação ou do seu uso para distorcer a realidade. Não surgiu hoje, ocorre em escala mundial e não existem mecanismos capazes de deter seu avanço.

O escritor italiano Umberto Eco, muito antes dessa confusão toda se instalar – ou que se tornasse popular a expressão fakenews – se insurgiu contra esse estado de coisas e atribuiu a essa mania de falar tudo a pecha da imbecilidade coletiva. Disse Eco: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”.

Afora uma aparente soberba na fala do autor de O Nome da Rosa, Baudolino e O Pêndulo de Foucault, dentre outras, não se pode negar que a imbecilização coletiva encontra eco mais facilmente na sociedade hiperconectada da atualidade. Não custa lembrar outra frase – acerca da idiotização coletiva – da lavra do jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, mestre do sarcasmo e de veia genial, quando afirmou: “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”. Quem duvida, ante a escalada que toma conta das redes, no Brasil e no mundo?

O documentário O Dilema das Redes (Netflix) tocou em pontos importantes dessa discussão ao jogar luz sobre a influência exercida pelas corporações do Vale do Silício na modelação da opinião, distorção da realidade, direcionamento da opinião em larga escala e interesses políticos e financeiros. E o estudioso do tema, um dos cabeças da criação de parte dessas redes, Jaron Lanier, escreveu até um livreto (Dez razões para você deletar agora suas redes sociais) para pregar a necessidade, urgente, de abandono das contas nas plataformas digitais como forma de sairmos dessa armadilha sem fim em que nos metemos.

O tema aqui, todavia, não o documentário acima, e sim algo mais prático em relação ao ato de opinar, construir e engolir teorias e disseminar isso em público, inclusive sem uso de redes.

As temáticas das tais manifestações, todo mundo conhece, são variadas: campanhas contra a vacinação, questionamento das medidas sanitárias adotadas na pandemia, ‘combate ao comunismo’, ao ‘gênero’, ao ‘feminismo’, misturando a isso defesa da religião, da família, da pátria, da propriedade, do uso do cinto de castidade, da virgindade e de qualquer coisa que caiba no rótulo ‘conservadorismo’ – ou algo que o valha. Das redes para as ruas e vice-versa, num carrossel sem fim.

Esse comportamento é diluído numa mistura do caldo que, genericamente, apelidei de ‘opinionismo’. Como se sabe, não se trata de um novo comportamento humano, pois guarda parentesco com a fofoca de outrora. Só que a coisa hoje exibe contornos de violência, crime, perversidade, maldade, crueldade e motivações diversas para acontecer. E com forte conotação política, inclusive partidária e ideológica.

Obviamente, nem todo aquele que se enquadra na categoria de idiota é, na prática, um imbecil de galocha, pois esse surto coletivo, principalmente via redes de internet, rende dinheiro, fama e muito prestígio a figuras exóticas. Criaturas que viviam até pouco tempo numa espécie de pântano, em relação ao mundo da opinião abalizada e com base em fatos, dados e argumentos, distribuem suas ‘opiniões’, distorções e zilhões de bobagens para todos os lados – e alguns faturam milhões de reais com essa ‘profissionalização da imbecilidade’.

Ninguém, de fato, sabe ainda que fim levará toda essa algazarra que mistura impropérios, burrice, falta de senso, desonestidade intelectual, interesses financeiros e malandragem política. O que se sabe, até aqui, é que estamos num beco sem saída nesse aspecto da comunicação e da interpretação do mundo.

Vamos esperar piorar um pouco mais para ver quem aponta alguma solução, talvez pior, talvez melhor. Ou, ainda, talvez o tempo nos obrigue a boiar por décadas nesse ‘infomar’ de desencontros entre realidade, utopia e distopia.

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