Perdemos ou nunca tivemos empatia real com pessoas que vivem de trabalhos precarizados?

Entregadores de comida, turma do Uber, gente do telemarketing, diaristas, atendentes de lojas, farmácias, frentistas e outras profissões de baixa remuneração: até onde isso nos afeta como cidadãos

* Texto originalmente publicado no perfil do Substack com autor

O mundo do trabalho mudou radicalmente nas últimas décadas, em particular com o surgimento e popularização das ferramentas digitais. Sumiram muitas e surgiram outras profissões. Várias atividades se tornaram precarizadas – em geral com jornadas extenuantes, baixa remuneração e (quase) nenhum vínculo trabalhista. Milhões de pessoas ao redor do mundo se viram para tirar seu sustento da maneira que podem, seja por meio de aplicativos, nas empresas de telemarketing, entregas de motofrete, atendimento em postos de gasolina, farmácias, mercadinhos e outros setores do comércio e serviços. Temos ainda as diaristas, passadeiras de roupas a atendentes de lojas populares e muita gente que não caberia neste texto.

Desse universo, a categoria em condições mais precárias possivelmente é aquela do universo digital, vinculada exclusivamente aos aplicativos de celulares de algumas corporações e startups, com destaque para empresas como Uber e IFood, dentre outras. Lidamos com esses trabalhadores e trabalhadoras praticamente todos os dias. E surgem algumas questões específicas do campo da cidadania: nos importamos com essas pessoas? Temos algum tipo de empatia em nossa relação com elas? Qual a noção que temos desse tipo de trabalho, especialmente se estamos nas camadas da sociedade com boas condições de trabalho e salários que nos colocam na classe média ou em condições de consumo razoáveis?

Essa reflexão surgiu no contexto do noticiário recente, no caso brasileiro, de muitos atritos entre moradores de prédios de classe média e de luxo, principalmente das regiões Sul e Sudeste do país, ao se recusarem a descer de suas ‘fortalezas’ para receber encomendas, em geral lanches e outros pedidos de comida transportados nas costas por um exército de trabalhadores dos aplicativos. E as desavenças, maus-tratos e xingamentos ocorrem por motivos fúteis, da parte de quem vive no conforto de casa e, muitas vezes, descarrega problemas e frustrações em quem vem apenas prestar um serviço básico na sua casa ou apartamento.

Encontramos esse conjunto de trabalhadores precarizados a toda hora no trânsito, indo e vindo do trabalho. Ou reconhecemos sua presença indireta por meio do barulho de suas motos e bicicletas motorizadas. Também vemos muitos deles em calçadas, ruas ou bolsões de espera nas imediações de lanchonetes, restaurantes e padarias, ainda mais nos grandes centros urbanos. Comem suas marmitex frias com pressa e aparente desgosto porque o dever os chama o tempo todo. Tem outra entrega, outra e mais outra chamando no celular.

Outro aspecto da área da cidadania, em alguma medida, poderia nos tocar em relação a esses grupos de trabalhadores e trabalhadoras: a pressa que nos faz quase não olhar nos olhos dessas pessoas. Pegamos nossa comida, produto ou encomenda e damos aquele ‘tchau’ ou ‘muito obrigado’ protocolar e seguimos a vida. Dificilmente dedicamos alguns minutos (ou até segundos) para perguntar algo, falar sobre qualquer assunto. Temos, para tanto, as desculpas perfeitas: o cara da moto tem pressa, eu tenho muitos compromissos, a comida pode esfriar ou, ainda, estou com ansiedade para abrir aquilo que encomendei etc etc etc e blábláblá.

Mais um ponto no carrossel dessa relação fluida e de quase zero empatia: quantos de nós já teve a curiosidade de saber um pouco mais sobre as condições de vida das diaristas ou pessoas que prestam algum serviço em nossas casas? E do pedreiro ou pintor que deixa tudo perfeito e some da nossa vida como por encanto? É possível que tenhamos mantido algum vínculo, por si só precário, com pessoas que acertam tudo em nossas casas ou apartamentos e sequer temos noção de como chegaram ali, como vivem, onde vivem e como seriam suas vidas. Isso vale também para porteiros, carregadores de malas, pessoal da recepção de hotéis etc. Nossas desculpas genéricas, de uma maneira geral, sempre estarão ali a postos para que não nos preocupemos com isso. Temos pressa, pouco tempo e cada um cuida da sua vida, dizemos a nós mesmos.

Por fim, certamente você que leu até aqui deve se perguntar se a intenção do autor do texto seria sugerir que todo mundo parasse tudo o que está fazendo para “dar atenção” aos milhões de trabalhadores e trabalhadoras que ganham pouco, moram longe, esticam em jornadas sem fim e nunca conseguem descansar a cabeça. Tirando os exageros e as ironias, não se trata disso, efetivamente. Trata-se de não desviar o olhar para essa realidade, de olhar nos olhos dessa gente que está em outra condição de trabalho diversa da nossa e, sempre que possível, dar algum tempo para trocar uma gentileza, uma palavra de carinho ou de conforto.

Quem sabe, se é que não ficou muito claro até esse ponto, reaprendemos um pouco sobre empatia. Se estivermos realmente enferrujados nesse aspecto. Nunca é tarde para aprendermos – ou para um reaprendizado – sobre gentileza, bom tratamento e cordialidade com quem dedica tempo, esforço e suor para nos fazer bem.

Era isso por enquanto!

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