
Talvez ninguém aqui se lembre mais como entrou para uma ou algumas das ditas “redes sociais” que frequenta. Ou teríamos sido tragados pelo poder mágico dessas plataformas digitais? E quem consegue se livrar desse vício? Enfim, não faltam dilemas para alimentar a longa discussão, inclusive no campo acadêmico, acerca da verdadeira era de dependência que vivemos em relação a essa forma de comunicação imediata.
O texto que se alinhava acima não é sobre o badalado documentário O dilema das redes (Netflix, 2020), que dissecou a ação dos algoritmos e corporações nesse campo de uns anos para cá. A intenção é falar mesmo como chegamos aqui e o que nos faz presos a uma teia de informações, desinformações, cores, luzes, dados, exposições – um processo talvez até pior do que certos estágios de dependência química.
A respeito disso, basta lembrar que outro dia o mundo quase todo entrou em parafusos porque as redes pertencentes ao bilionário Mark Zuckerberg (Facebook, Instagram e WhatsApp) ficaram fora do ar por apenas SEIS HORAS. A pane provocou transtornos de toda ordem, inclusive socioeconômicos num curto período de duração. Escrevi uma pequena reflexão sobre o assunto (clique aqui).
Em entrevista ao jornal espanhol El País, o filósofo alemão de origem sul-coreana Byung-Chul Han colocou o dedo na ferida do processo desesperador pelo qual passamos e apontou o vilão: o celular. Ele diz que tratamos o aparelho como se fosse um “rosário entre os dedos”, usando alegorias religiosas para definir nossa dificuldade de largar o vício. “O like é o amém digital”, afirmou o pensador, dentre outros pontos destacados na entrevista (leia aqui). Muito além das tiradas realistas e inteligentes de Byung-Chul, bom lembrar que o celular não é o único motor de tudo o que nos faz prisioneiros das redes, pois elas integram o que se chama de “multitelas” – de TVs, computadores, celulares, tablets, relógios digitais, livros eletrônicos etc.
Temática estudada desde quando ocorreu a entrada desses mecanismos de comunicação no nosso cotidiano, o que preocupou alguns dos pensadores foi a forma como lidaríamos com a popularização das redes como instrumento de sociabilização – o que hoje é uma realidade com pessoas na casa dos bilhões em uma ou mais plataformas digitais no mundo todo. A conhecida teoria popularizada pelos estudos do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), caracterizada pelo estudo do “universo líquido” dos relacionamentos humanos ganhou ainda mais corpo com o passar do tempo e a dominação exercida pelas redes sociais.
Suas obras seminais Modernidade Líquida, Amor Líquido e Tempos Líquidos dissertavam sobre os descaminhos da globalização e suas consequências no modo como nós humanos começamos a trilhar essa estrada – aparentemente sem volta – que nos leva não se sabe onde. Talvez desconfiemos, mas não sabemos exatamente o lugar.
Retornando ao ponto inicial das provocações deste texto, talvez tenhamos adentrado o mundo em redes por nos parecer doce e atraente em suas propostas “primárias”, tais como como “reencontrar amigos de infância, parentes, conexões rápidas” ou, ainda, “facilidade de falar, se divertir e trabalhar ao mesmo tempo”. Como toda boa promessa, certamente nos demos conta do pesadelo. Foi como se tivéssemos sido atraídos pelas guloseimas da casa de doces da bruxa do conto João e Maria. Nada era mais tentador do que podermos fazer muitas coisas ao mesmo tempo sem precisar sair do lugar.
E, nesse caso, “ficar no lugar” talvez seja a chave de parte desse processo de dependência que experimentamos dos mecanismos em rede. Uma cela online construída com poucos cliques, com consentimento nosso e um toque de malícia dos carcereiros digitais do outro lado do mundo e não sabemos mais o que fazer dessa prisão. Trabalhamos conectados, comemos olhando para alguma tela, rimos e choramos com olhos grudados no cristal líquido e expomos nossas vidas líquidas – ou duras, difíceis, ingênuas, insossas, vazias ou com aparência de alegres – para os algoritmos e bilhões de pessoas com as quais nunca interagiremos. Claro que muita gente não se expõe, usa menos as redes do que supomos e outro tanto sequer sabe da sua existência. Falamos aqui dos bilhões de enredados em todo o planeta, neste caso.
Como ficou claro em O dilema das redes e também é objeto de denúncia diária em outras mídias, a dominação das plataformas digitais em nossas vidas vai muito além do processo de dependência do seu uso, passando a significar o abuso com os dados que fornecemos e a monetização destes feita entre corporações midiáticas e grupos comerciais em geral. Somos, na prática, o produto que autorizou sua exposição em troca de “acesso gratuito” a serviços de comunicação em rede – que depois nos transformam em várias coisas, inclusive em coisas para serem consumidas pelo público em geral.
As ditas redes não são mais aquelas engenhocas surgidas em garagens ou fundos de quintais por conta do tédio de adolescentes ou estudantes rebeldes de universidades mundo afora, como a literatura e o cinema mostraram quando foram contar suas origens. São grandes corporações, em geral oligopolizadas, nas mãos de poucos sujeitos e detentoras de poderes muito acima dos estados e instituições em todo o mundo. São grupos econômicos, cuja concentração de poder mexe com democracias, instituições, distorce regras de convivência e faz o jogo de manipulação de outras corporações e até de governos. São essas empresas que nos colocam todos os dias diante de suas telas e nos oferecem seus serviços – e dos quais somos apenas uma parte.
Falta-nos, portanto, uma cultura de estudo da dependência digital, inclusive para não bancarmos os ingênuos de achar que vamos sair de tudo da noite para o dia, pois não dependemos em nada delas. Até este texto que fala sobre é levado ao ar por conta desse processo de redes, e conta com a dependência de outros para ser lido e repassado.
O lance é o aprendizado e a disseminação de um pensamento crítico a respeito do que nos mantém nesse estágio de dependência. E como faremos para que essa condição seja um dia superada. Será?
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