Considerações sobre “Meu Pai”

Fotograma Netflix/Anthony Hopkins/Reprodução

Um filme que tem Anthony Hopkins e Olivia Colman no elenco traz o selo de garantia prévio de ser comovente. Dificilmente não é perturbador e quase nunca precisa de esforço para retirar o espectador da zona de conforto da sua sala ou do cotidiano. Mas Meu Pai (The Father, Inglaterra/França, 2020) contém elementos de uma fluidez tão absurdamente instigante que ninguém fica imune aos impactos reais deste drama, que rendeu o Oscar a Hopkins em 2021 (veja trailer aqui).

Adaptado do teatro pelo diretor Florian Zeller, Meu Pai se desenrola no universo mental do personagem Anthony (Hopkins) e da filha Anne (Colman). Não existe um tempo, uma linearidade. Os lugares mudam conforme as confusões mentais dele. Quase nada corresponde ao que é mostrado na tela, pois a intenção é que a audiência não compreenda o que acontece – reproduzindo as percepções do personagem central sobre a perda de referências, memórias ou da noção dos acontecimentos.

Não é propriamente um filme sobre demência. É sobre olhares, desvio de rotas. Também mexe com paciência, gestos, manias e filtros que somem com o tempo. Tem rasgos de solidão profunda e sarcasmo fino. Alguns coadjuvantes que contracenam com Anthony (o pai) misturam seus papéis para o fazerem se sentir menor, mas ele retruca. Sofre, reage, morde e assopra. Nunca sabe em qual lugar se encontra. Ou com quem fala. Nem mesmo com a filha ou pessoas que entram e saem. Entrar e desaparecer são sinais da trama sobre a vida, a existência e o tempo de cada um de nós.

O relacionamento humano é destrinchado num pequeno núcleo familiar nesta película em condições turvas, como é no mundo real. Ninguém quer mudar seus planos, cancelar ou adiar projetos porque um ente querido precisa de atenção, cuidados e carinho naquela fase em que estamos sentindo que aquela pessoa prepara seu desembarque do nosso convívio. Temos muitas coisas a fazer. E a coisa piora de figura quando esse ser – no caso o pai – resiste, aparentemente, ao que “planejamos” para ele. Queremos resolver logo coisas que nunca foram resolvidas. Não queremos ter nossa rotina alterada e sempre alguém da família traz a solução pronta do asilo ou da “casa de repouso”.

A sensação de que lidamos com um estorvo – ou que somos o próprio embaraço a tudo – faz com que o filme pegue todo mundo pelo contrapé. Queremos nos livrar da pessoa ou queremos que outros assumam a tarefa de “aturar” quem é impertinente, ranzinza, delira ou perde a noção do tempo? A solução encontrada pelo diretor da trama foi permear toda a narrativa de angústia, o que inclui a filha e quem mais cruza o caminho do personagem principal. Ninguém escapa. Nem mesmo a simpática cuidadora que a filha tenta arrumar para ele, mas que acaba sendo uma pitada a mais na confusão temporal e nas lembranças embaralhadas.

Semear a discórdia é uma tarefa que Florian Zeller cumpre com maestria, ele também o autor do texto original da peça teatral na qual se inspira Meu Pai.

Impossível não chorar e não se angustiar. Natural reagir pensando quantas vezes já fizemos ou pensamos em fazer isso com quem nos importuna no fim dos seus tempos, talvez sem pensar que logo logo estaremos na fila de quem nos fará o mesmo. A negação a isso é o que nos faz ter a sensação de que esse problema é “dos mais velhos”.

E quem somos nós na real? Quem seremos em breve no carrossel da perda de noção de tudo? O filme não responde e nem precisa. Você aprende pensando. Se angustiando e se emocionando, às vezes gargalhando com um Hopkins em estado de graça e uma Olivia Colman simplesmente impecável.

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