Informação e desconhecimento

Por Dilson Cruz*

Foto por Pixabay em Pexels.com

Tornou-se um truísmo de nossos dias afirmar que embora nunca tenha havido tanta informação disponível, poucas vezes na história da humanidade o obscurantismo encontrou tantos adeptos. De fato, trata-se de uma constatação infelizmente banal, mas que nem por isso deixa de ser verdadeira nem por isso nos impede de refletir sobre ela; claro que sem que se tenha a pretensão de exauri-la ou mesmo de examinar com profundidade suas causas. Logo, o que se buscará neste texto é realizar uma reflexão muito modesta sobre essa questão sem perder de vista o difícil momento que atravessamos.

A escrita – e, consequentemente, a leitura – é tão fundamental para a humanidade que dividimos nossa história em duas fases: a pré-história – que trata dos fatos ocorridos antes da escrita -, e a história propriamente dita, que se ocupa dos fatos que foram objeto de algum tipo de registro. Quando surgiu, há cerca de 5 mil anos, na Suméria, a escrita e a leitura eram privilégio de pouquíssimos indivíduos. Exceto os escribas, ninguém sabia ler; nem mesmo os reis. Além disso, via de regra, a escrita não tinha por objeto a literatura ou a crônica dos fatos marcantes de um povo, mas prosaicos registros contábeis. Ao longo da história, porém, a escrita foi ganhando outras finalidades, disseminando-se entre povos e indivíduos de tal forma que se colocássemos em um gráfico o número de pessoas alfabetizadas e a soma de todos das riquezas de todos os povos da terra, certamente veríamos duas curvas bastante paralelas.

Nos países mais desenvolvidos, a alfabetização alcançou a totalidade da população já há muitas décadas e mesmo no Brasil, embora o porcentual de analfabetos funcionais continue a nos envergonhar, os avanços dos últimos decênios – apesar do retrocesso dos dois últimos anos – são notáveis. A difusão da leitura e da escrita trouxe consigo a ampliação do conhecimento: à medida que cresciam os que sabiam escrever também aumentavam os que podiam ler e, com eles, a diversidade de fatos que eram objeto de registro. Se hoje isso nos parece óbvio, convém pensar que nem sempre foi assim; aliás, esse processo é bastante recente, pois se passaram milênios até que o conhecimento de um povo fosse organizado de forma sistemática e colocado ao alcance dos leitores; ou melhor, de pouquíssimos leitores.

De fato, a primeira enciclopédia moderna, a Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers foi escrita por Diderot e Alembert entre 1751 e 1772, mais de 40 séculos depois da invenção da escrita. Tratava-se de um feito absolutamente inédito: pela primeira vez, todo o conhecimento humano (ou parte significativa dele) estava disposto de forma sistematizada, organizada em verbetes, ordenada alfabeticamente e com ilustrações. A enciclopédia de Diderot e Alembert contava com 17 volumes que reuniam 71.818 verbetes e 11 ilustrações que tinham o objetivo, nas palavras de Diderot, de repertoriar os conhecimentos e os saberes de seu século e também abrir uma reflexão crítica de maneira a mudar o comum de pensar (grifos nossos).

Reprodução – Wikipédia

Obviamente, a popularização das enciclopédias percorreu um longo caminho: em seu início, tais livros eram uma exclusividade de reis e nobres e em geral ficavam restritas a bibliotecas e universidades, mas com o tempo chegaram às mãos de um número maior de pessoas, embora nunca tenham se tornado um bem de consumo das massas. Lembro que quando eu estava no ensino fundamental apenas alguns poucos alunos privilegiados podiam se dar ao luxo de ter em casa uma enciclopédia como a Barsa ou a Mirador, obras que hoje meus filhos não fazem a menor ideia do que sejam.

A internet – que se estabeleceu décadas depois de a leitura ter-se tornado uma atividade absolutamente corriqueira para expressiva parcela da humanidade – mudou radicalmente esse quadro ao colocar ao alcance de grande parte da população uma quantidade de informações infinitamente superior ao que imaginavam os filósofos iluministas mais sonhadores. Hoje qualquer um que disponha de um celular e uma conexão à internet pode acessar a Wikipedia, que dispõe de mais de 1.066.000 artigos em português,  2.340.000 em francês e 6.232.000 em inglês, sem contar os outros idiomas. Ou seja, um brasileiro comum tem acesso a um número quase 15 vezes maior de verbetes do que tinham Diderot e Alembert – isso, obviamente, sem considerar o conteúdo, a extensão e a complexidade de tais verbetes. Além disso, se a enciclopédia dos iluministas necessitou de 20 anos para ser escrita, hoje o registro de um fato é quase simultâneo à sua ocorrência.

Mas, se é assim, por que esse acúmulo de conhecimento não gerou os efeitos imaginados por Diderot, de promover uma reflexão crítica, mas antes tornou-se veículo para a disseminação de mentiras, de obscurantismos dos mais diversos matizes, de negação da mesma ciência que tornou possível que tantos celerados divulgassem sua própria ignorância e preconceitos?

A resposta, acreditamos, está no fato de que embora o verdadeiro conhecimento, aquele que é fruto da ciência e da razão, esteja acessível a todos, ele não é, de fato, acessado, senão por uma minúscula minoria. Como se sabe, a maioria não busca o conhecimento verdadeiro, não faz uma reflexão crítica do que lê, mas se satisfaz com boatos – os quais, como inúmeros parasitas, também sempre acompanharam a humanidade, mas agora encontram um hospedeiro mais eficaz: a mesma internet.  Não basta poder ter acesso ao conhecimento; é preciso querer acessá-lo, ter necessidade desse conhecimento. Ora, tal desejo, tal carência, não nasce da noite para o dia, mas precisam ser cultivados.

Se o manejo da internet não demanda algumas horas, se tanto, de aprendizado, a aquisição de um pensamento verdadeiramente crítico requer outra escala de tempo, e nesse ponto a Literatura, em especial a literatura infantil, exerce um papel fundamental, arrisco-me mesmo a dizer superior à Ciência. Concorde-se ou não com as ideias do Lobato – tão merecidamente citado neste site – não é possível negar-lhe um mérito notável: o de além de instruir as crianças e adolescentes, fazê-los refletir, criticar; permitir-lhes alcançar uma nova maneira de pensar, nas palavras de Diderot. É isso também o que faz um livro como O Saci de Duas Pernas: leva a criança a rejeitar ideias pré-concebidas e pensar que o mundo pode ser diferente. Em outras palavras, a evoluir como homem e como cidadão. Nunca, na história recente do Brasil, tal tarefa foi tão urgente.

* Dilson Ferreira da Cruz formou-se em Ciências Econômicas pela USP, em Letras pela mesma instituição, pela qual é doutor em Semiótica e Linguística Geral. É autor de O enunciador dos romances de Machado de Assis (EDUSP, 2008) e Trinta crônicas irreverentes (DISAL, 2007). Organizou as coletâneas, Trois contes (Éditions Chandeigne, 2010), sobre Machado de Assis, e L’homme qui parlait javanais, (Éditions Chandeigne, 2010), sobre Lima Barreto. Traduziu dentre outros, A Besta Humana (DISAL, 2014) e O abatedouro (Eduel, 2019), ambos de Émile Zola, e Sobre o sentido 2, ensaios semióticos (EDUSP, 2015) e História da virgindade (Contexto, 2016).

NOTA DO EDITOR DO SITE: O artigo acima, assinado pelo tradutor, pesquisador e escritor Dilson Cruz, inaugura a partir de hoje a seção Convidados (as) deste site. A série será composta por textos inéditos, publicados com o intuito de fomentar o debate qualificado sobre questões do nosso tempo e expressar a pluralidade de ideias que orienta este espaço.

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