
Existiu um dia, entre fins do século 19 e a primeira metade do século 20, aos pés da Serra de Teixeira, no Estado da Paraíba, uma civilização imaginária criada por um poeta sobre quem pairam dúvidas. É o que supõe a lenda.
A real é que a cidade e a Serra de Teixeira existem. E que o poeta e violeiro Zé Limeira existiu, mas virou uma lenda tão cativante que sua permanência se dá exatamente por suscitar dúvidas. Ele não ligava para a realidade aqui fora ou para o que existia entre o mundo como era e o universo como imaginava.
Faço uma breve pausa para relatar duas decepções com a história de Zé Limeira: a primeira, que emprestei meu livro Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, escrito pelo jornalista Orlando Tejo, e nunca mais vi; a segunda, que estive em Teixeira e ninguém com quem falei sabia da existência do “pássaro do Teixeira”. Como tudo que envolveu essa figura da poesia popular foi misterioso, me dei por satisfeito e passei adiante. Ficaram as lições básicas: livros do peito nunca voltam se emprestados, os tempos mudam e ninguém é obrigado a saber de tudo na vida.

Igual a qualquer leitor desse estilo literário, fui apresentado a Limeira pelo meu livro ‘sumido’ de Orlando Tejo, publicado nos anos 1970. Em seu prefácio, o jornalista paraibano – falecido em 2018 – transformou em uma quase-lenda o próprio feito da obra, pois lembrava que o bardo do seu Estado era conhecido e estudado na França, mas praticamente ninguém sabia da sua existência nas suas próprias terras. Ele próprio havia conhecido Limeira ainda em 1950 e passado a gravar suas histórias, perseguindo-o como a figura imaginária da Perua devoradora – que atormentava o cantador sobre quem escreveria anos depois.
Existe farta literatura no meio acadêmico sobre a obra de Zé Limeira, provocada principalmente pelas pesquisas de Orlando Tejo e do seu livro, que serve como uma espécie de espelho por onde a figura nunca fotografada do Poeta do Absurdo se mostra quadro a quadro.
O documentário O homem que viu Zé Limeira, produzido pela TV Senado, mostra os caminhos, a vida e a obra de Limeira a partir das pesquisas e vivência de Tejo, com saborosos recheios de poesia e passagens hilárias sobre as fantasias criadas por ele. Veja o documentário abaixo, disponível no Youtube.
Todo admirador do legado de Limeira é suspeito para falar sobre o que leu ou ouviu falar das suas construções porque fogem de tudo aquilo que caberia no estilo popular, mesmo com os cordéis e outros elementos da cultura das feiras narrando invenções, loucuras e fatos nunca comprovados. O cérebro dele era uma máquina de criar coisas, distorcer, fabricar neologismos, inventar fatos, misturar, bater, confrontar e dar a volta – desde que terminasse numa rima.
Não vou repetir aqui seus clássicos versos celebrizados por Tejo, pois a internet tem milhares deles compilados. Mas não deixo de lembrar que o cantor e compositor Zé Ramalho, cordelista de origem e paraibano como Limeira, não resistiu também aos encantos da criatura inventiva teixeirense e gravou a música pouco conhecida Visões de Zé Limeira sobre o final do século XX, como se fosse o próprio lhe soprando aos ouvidos. Veja a gravação aqui.
Bom, está na hora de deixar que o leitor fique curioso e procure saber que foi Zé Limeira por conta própria. Afinal, muitos chegaram a dizer a Tejo que Limeira era fruto da sua imaginação, mas o jornalista que colocou o poeta no mundo sabe que aconteceu o contrário: foi Limeira quem trouxe Tejo ao mundo. Para provar que as lendas são maiores do que muitas coisas que precisam de um laboratório para provar que existem.
Peguemu ônibus nu brais
Cum distino ao egitò
Prá visitá as pirami
Na sexta feira maiò
Incontramu treis reis magro
Mexenu num sarcofàgo
Ondi dromi us faraó!
Tutancâmon era rei
Ficô véi, foi prum asilo
Prumòdi num passá fomi
Pescô tilápia nu Nilo
Num sei si digu ô num digu
U rei tuta vendeu trigu
Trapaciava nus quilu!
Quandu jusé foi vendidu
Foi vivê lá nu palaçu
Du fiofò da rainha
Jusé quebrô u cabaçu
Quandu u rei sintiu a gaia
Gritô pra jusé: num saia
Vô li passa-lu nu açu!
I foi assim qui si deu
A istòra dessi povu
Fuginu lá di cairò
Percuranu um mundu novu
Moisés venu a caisa feia
Di tão quenti tava a areia
Chega cunzinhava um ovu!
(Zé Roberto)
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Boa tarde!
Valeu, mestre!
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