
A pandemia não está controlada, como muitos querem supor. Os dados mostram o deslocamento do epicentro das infecções e mortes para diferentes regiões do globo, de tempos em tempos. O Brasil e os EUA, por exemplo, figuraram no topo da tragédia durante muito tempo, após os meses iniciais da circulação do coronavírus e da devastação provocada pelo vírus na Europa.
Novamente, áreas que passaram por rígidos controles e avanço vacinal começam a sofrer revezes com a volta da circulação descontrolada, aumento de casos e de mortes, notadamente na Alemanha, Áustria, Holanda e Itália, além de novas variantes que proliferam no continente africano. Na raiz disso tudo, os movimentos negacionistas que impediram o avanço da vacinação – com destaque para autocracias e ditaduras que se firmam há alguns anos em países do antigo bloco de influência soviética do Leste Europeu. Ou em locais onde sequer o processo avançou por falta de vacinas, no chamado Terceiro Mundo.
Entre tragédias e avanços, conquistas e algum respiro verificado em países como o Brasil e em outras nações, o mundo discute possibilidades e reflexos futuros da pandemia em todos os setores, em particular na economia, na organização das cidades, estruturas de saúde estatais e nos sistemas de educação, lazer e cultura.
Mas é no mundo do trabalho que chama a atenção uma série de estudos e desafios. A polêmica da vez foi levantada a partir de uma matéria assinada no jornal espanhol El País pela analista María Antonia Sánchez-Vallejo, a partir de Nova York. O título A revolução que faz com que quatro milhões de trabalhadores larguem o emprego a cada mês nos EUA diz muito do que tratarei a seguir (leia o texto aqui). O que estaria provocando essa avalanche no mercado trabalhista? O que faz com que as pessoas, aos milhões, simplesmente ‘abandonem’ seus empregos e sonhos? Do que passarão a viver?
Entre estatísticas e análises, a correspondente espanhola aponta para alterações colhidas a partir de entrevistas de “saída do emprego” – um tipo de processo clássico na cultura do trabalho norte-americana – no qual as pessoas dizem a motivação de sua saída daqueles postos que ocupavam por um tempo ou por décadas em suas vidas. Eis que os reflexos da pandemia deram as caras na maioria dos casos, por meio do “cansaço” e da mudança de perspectiva, segundo apurou a jornalista ao cruzar dados e entrevistar especialistas e trabalhadores que deixaram suas funções – em grande parte sem sequer desejar uma busca imediata por outra colocação ou emprego.
O detalhe é que os milhões de norte-americanos que estão deixando de trabalhar a cada mês alegam, em geral, não suportar a carga de trabalho ou simplesmente não querem mais alimentar o sonho do trabalho e da carreira como forma de direcionar suas vidas. Um desencanto, no fundo, ampliado pelas mudanças que o isolamento, as mortes, as perdas e as condições de trabalho impostas durante o período mais duro da pandemia provocaram nesse tempo. Esse comportamento ocorre, em geral, entre pessoas que aproveitaram os investimentos estatais maciços para combater os efeitos do coronavírus, a partir do governo Joe Biden, e acabaram juntando recursos que possibilitarão adiar uma eventual ‘volta ao trabalho’. Ou, simplesmente, nunca mais voltarão ao trabalho da forma como era antes.
É bom destacar que não se trata de uma nova onda de empreendedorismo que leva milhões de pessoas a renunciar ao trabalho fixo e cotidiano que sempre tiveram. Trata-se de um corte desse processo, justamente de um esgotamento com o trabalho convencional. E as perdas e mortes também dizem muito a respeito dessas decisões ora observadas, pois se percebeu que as pessoas “juntaram dinheiro” trabalhando e perderam seus melhores tempos de vida, de repente, na pandemia.
Tem também o aspecto, este agora observado não somente na economia dos EUA, das mudanças tecnológicas experimentadas durante o período de isolamento que poderão ser a nova maneira de trabalho que milhões poderão abraçar, seja no universo digital ou em atividades remotas de um modo geral. E na própria dinâmica econômica – e pessoal – capaz de ‘reinventar’ os processos de trabalho. Ou seja, como se diz no universo dos treinamentos em grupo, de “ressignificar” o próprio trabalho.
Temos, portanto, mais um desafio, que se soma aos tantos, da luta pela sobrevivência de milhões de pessoas, da busca pelo trabalho pelos que dele dependem mais e da perspectiva de mudança que outros tantos milhões querem imprimir às suas vidas.
Ainda não se sabe como isso terminará, mas certamente chegaremos a muitas formulações e novidades. Boas ou ruins, saberemos quando soubermos a sua real formatação.
No mínimo, segundo o texto da jornalista do El País, o movimento de mudanças já provocou um rebuliço no ambiente empresarial, pois está cada vez mais difícil contratar pessoas, nos EUA, para atividades como transportes, comércio e serviços – pelos menos por enquanto. E a fila dos “desempregados” que não querem voltar ao trabalho imediatamente só aumenta. Por lá.