Iniciei a tarefa de entrada na leitura da obra do pesquisador, professor e historiador potiguar Muirakytan Kennedy de Macêdo (1964-2021) pelo seu livro Rústicos Cabedais (Sol Negro, 2ª edição, 2021) e, confesso, pareço estar diante de um roteiro de cinema. Sei que é história, esforço, pesquisa de fôlego, muitos anos destrinchando documentos, cotejando relatos, dados, datas, personagens, linguagens e uma gama de conhecimentos amarelados com o tempo, mas não consigo desviar o olhar da narrativa criada por ele para prender o leitor. É uma doce tentação que recomendo a quem gosta de revisitar o passado, como se teletransportado pela literatura com ares de história contada pelos antigos.
Como exímio manejador de palavras, Muirakytan soube tecer fios de contos reais sobre os sertões de onde brotou como gente e se fez como referência em pesquisa etnográfica, histórica e antropológica – dado que o citado livro é fruto da sua tese de doutorado, de 2007. Por essas bordas de terras, de forma engenhosa e amparada em farta documentação, ele provoca a curiosidade de leitores e leitoras sobre ambientes descritos como confins e fins de mundos, inóspitos, onde se urdiram processos civilizacionais que marcaram as paragens sertanejas – com destaque para a região do Seridó, onde nasceu, viveu, cresceu e fez história.
Como frisei na entrada do texto, apenas começo a tatear os elementos trazidos por ele na sua obra seminal acerca dos processos de povoamento e ocupação do espaço territorial daqueles sertões, pois o detalhamento que fez dos acontecimentos – e por isso deu ao livro o subtítulo de Patrimônio e cotidiano familiar nos sertões da pecuária – não é uma recontagem do que se sabia, mas um mergulho em fontes antes nunca consultadas, ou vagamente citadas, esmiuçadas a partir de técnicas apuradas, dele e de outros pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde lecionou por anos.
Ora você é levado a conhecer minúcias e curiosidades sobre lugares, nomes antigos, explicações originais e personagens dos quais pode ter vaga lembrança; noutro momento, Muirakytan apresenta o desenrolar dos conflitos bélicos e étnicos da Guerra dos Bárbaros, empreendida pelos colonizadores contra os habitantes naturais das terras por onde passou a se assenhorar o gado, a reboque dos traços culturais, políticos, econômicos e religiosos de outrora daquela parte do Brasil antigo; ele também fuçou em documentos cartoriais, religiosos e outros de caráter oficial, além de beber em relatos consagrados sobre famílias, grupos indígenas, escravizados e outros elementos importantes da vida em formação nos sertões. Difícil não imaginar o clima de ocupação do Oeste dos EUA, no caso das porções territoriais interioranas que se distanciavam do litoral brasileiro, embora de modo original e típico.
Grosso modo, os relatos mostram uma corrida do gado, dos seus subprodutos, com tessituras acerca das riquezas, miséria, modos de vida, roupas, casas, alimentação, modos de falar, influências, poderes políticos, militares e religiosos em voga. Isso tudo num impressionante ritmo de narrativa que tira o fôlego de quem lê, ao mesmo tempo em que nos prende nos seus novelos. Uma urdição perfeita.
Esse meu processo de iniciação ao estilo, pesquisas e relatos mostrados por Muirakytan em sua obra mostra a dimensão da genialidade do jovem que nos deixou no auge do trabalho historiográfico, poético e criativo. Tive o prazer de desfrutar da companhia, por algumas horas, de sua companheira, a também poeta e pesquisadora Ana de Sant’ana, em visita recente ao Rio Grande do Norte. Pude ver como a passagem marcante da história pessoal dele pela vida dela produziu um milagre impressionante de sintonia, pois o lugar onde Muirakytan passou os últimos tempos guarda seu jeito – o jeito de ambos – nas poesias, cuidados e relatos que fizeram em seus livros e modos de construir mundos.
Vou seguir na trilha das leituras deste brilhante amigo de outrora, enquanto os sabores das letras ficam pelos cantos do cérebro. Realmente é uma literatura saborosa e inventiva, a despeito do todo realista e impressionante que recheia seus relatos.
PS – A propósito do autor, o primeiro texto deste site foi justamente uma homenagem a Muirakytan, cujo conteúdo pode ser acessado clicando aqui. Trata-se de uma viagem poética que escrevi quando da passagem espiritual dele, oportunidade na qual falei do amigo com quem pouco convivi e que marcou toda uma geração de leitores e pesquisadores.
Mister, você disse tudo: este livro é uma obra seminal. Muirakytan nos deixou muito jovem, mas o seu legado para as atuais e futuras gerações é perene. Parabéns pela análise.
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Meu caro, realmente o trabalho dele é marcante e meu contato inicial com sua obra me fez perceber o quanto tem de novidades, preciosidades e informações relevantes. Disse e reafirmo: o texto flui de tal modo que esquecemos se tratar de uma pesquisa acadêmica.
Agradeço a gentileza dos comentários.
Abraços!
Djair
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