Anne Frank

Anne Frank e seu famoso diário/Reprodução

Por Belmires Soles Ribeiro *

Ninguém dotado de um mínimo de sensibilidade consegue conhecer a história da menina judia Anne Frank sem se comover e se maravilhar com a genialidade daquela mocinha, que permaneceu tão pouco tempo entre nós.

Ela e seus pais moravam na Holanda, numa família de classe média, durante a Segunda Guerra Mundial, quando houve a invasão do país pelas tropas nazistas.

Já haviam fugido da Alemanha, em decorrência da perseguição aos judeus, acreditando que na Holanda estariam a salvo das garras do demônio Hitler. Engano fatal.

A fim de evitar serem presos e enviados para os campos de concentração, pelo fato de sua ascendência judaica, a família Frank preparou como esconderijo um anexo secreto ao escritório de Oto, pai de Anne, no nº 263 da Prinsengracht, em Amsterdam.

Naqueles cômodos acanhados se alojaram oito pessoas: Anne, sua irmã Margot, sua mãe Edith e seu pai Frank, além de uma outra família judia, os Van Daan, pai, mãe e filho, e o dentista Dussel. Ali permaneceram escondidos dos alemães, com total insegurança quanto ao futuro, e muito desconforto.

Anne era uma menina alegre e tagarela, ela mesma o revela:

O sr. Kepler, o velho professor de matemática, implicava comigo, por eu falar demais. Me mandou fazer uma redação sobre o tema: ” Uma tagarela”; uma tagarela! O que se poderia escrever sobre isto? Mas não me afligi

A menina loquaz, retirada de sua agradável vida rotineira de frequentar a escola e brincar em casa com a irmã, e trancafiada em aposentos desconfortáveis, com pessoas que mal conhecia, além da família, buscou uma válvula de escape na escrita de seu diário, onde despejava suas angústias, sonhos e frustrações, sem ter certeza do que viria pela frente, nem imaginar quando, e se algum dia poderia voltar a normalidade.

No diário, Anne relatava toda sua tediosa rotina, seus medos, as birras com os pais e demais ocupantes do sótão, sua paixonite por Peter, o filho da família Daan; seus estudos e lembranças, além de análises existenciais.

Fico aflita com a ideia de não poder sair daqui, e tenho medo de que nos descubram e nos fuzilem. É isto que pesa sobre mim de um modo horrível. Durante o dia não podemos nos mexer à vontade. Não podemos pisar o chão com força e temos quase de cochichar em vez de falar, pois lá embaixo, no armazém, não nos devem ouvir.”

Tinha pouco mais de 13 anos quando ingressou no local de refúgio. Da família Frank, ao final da guerra, somente o pai, Oto, sobreviveu.

Ao serem delatados e presos pela Gestapo, a famigerada Polícia Política de Hitler, Anne deixou o diário no sótão onde se escondia e, felizmente, o caderno foi guardado por uma das pessoas que respaldavam a família no “exílio”.

Retornando ao local, após a guerra, o pai de Anne recebeu o manuscrito e surpreendeu-se pela profundidade e maturidade dos temas abordados, máxime porque escritos por uma adolescente de pouco mais de 13 anos. Oto resolveu publicá-los e a obra converteu-se em um grande sucesso editorial, sendo traduzido para mais de 70 línguas, com grande vendagem até os dias de hoje.

Algumas pessoas, principalmente ex-nazistas, questionaram a autoria, desacreditando que uma adolescente pudesse ter produzido escritos tão profundos, mas em sede judicial da Corte de Lubeck/Alemanha foi realizada perícia grafotécnica para confirmar a autoria dos escritos. O resultado confirmou que os manuscritos provinham do punho de Anne.

Em 1986 o Instituto Holandês de Documentação de Guerra também atestou a autenticidade dos escritos.

A admiração e o impacto que o diário provocou nas pessoas podem ser avaliados pelo que disse o ex-presidente norte-americano John Kennedy:

De todas as multidões que, ao longo da história, têm falado pela dignidade humana em tempos de grande sofrimento e perda, nenhuma voz émais convincente do que a de Anne Frank.

E por que o diário de uma menina provocou tamanha comoção nos seus leitores?

Primeiramente, há de se considerar a absurdidade da situação de Anne, como milhões de outros perseguidos pelo III Reich, confinada em um sótão, só por ser de família semita, no decorrer de um conflito bélico mundial, sem saber o que os aguardava, sentindo o medo real de, a qualquer momento, serem descobertos e presos pelos seus algozes germânicos.

Depois, a sua prisão e morte, acometida de tifo, a poucos dias da libertação, pelos exércitos soviéticos, do campo de trabalhos forçados de Bergen Belsen/Alemanha. A morte da irmã Margot, pela mesma enfermidade que a acometeu. Ainda, o triste fim de sua mãe Edith, em Auschwitz, que definhou até a morte em face da desnutrição que imperava nos campos.

Mas a comoção dos leitores não advém só das circunstâncias em que foram produzidos os escritos, surpreende, sobretudo, a maturidade demonstrada por quem viveu tão pouco e tão reduzido tempo teve para aprender do mundo, mas que soube traduzi-lo de forma literária tão espontânea e comovente e, no meio de um Armagedon, na sua imensa pequenez diante da máquina de guerra alemã, logrou manifestar ainda palavras de esperança.

Porém, não se conclua daí que Anne foi uma criança prematuramente amadurecida e, por isso, distante das birras e artimanhas normais de qualquer adolescente. Não, apesar de suas análises contundentes da realidade, Anne protagonizava todas as picuinhas e implicâncias típicas dos jovens de sua idade, principalmente com a mãe e a irmã Margot, conforme narrava no diário.

As guerras, a par de revelarem toda a crueldade e bestialidade humanas em sua plenitude, muitas vezes servem, outrossim, para extrair sentimentos de nobreza, superação e talento, tal qual aconteceu com Anne.

Alguns excertos do “diário” dão uma ideia do elevado espírito da adolescente:

Os mortos recebem mais flores do que os vivos porque o remorso é mais forte que a gratidão.”

Quando escrevo, sinto um alívio, a minha dor desaparece, a coragem volta. Mas pergunto-me: escreverei alguma vez coisa de importância? Virei a ser jornalista ou escritora? Espero que sim, espero-o de todo o meu coração! Ao escrever sei esclarecer tudo, os meus pensamentos, os meus ideais, as minhas fantasias!

É realmente inexplicável que eu não tenha deixado de lado todos os meus ideais, porque eles parecem tão absurdos e impossíveis de se concretizarem. Mesmo assim eu os conservo, porque ainda acredito que as pessoas são boas de coração. Simplesmente não posso edificar minhas esperanças sobre alicerces de confusão, miséria e morte. Vejo o mundo gradativamente se tornando uma selvageria. Escuto o trovão se aproximando, cada vez mais, o que nos destruirá também; posso sentir o sofrimento de milhões e ainda assim, penso que tudo irá se corrigir, que esta crueldade também terminará. Enquanto isso, preciso adiar meus ideais para quando chegarem os tempos em que talvez eu seja capaz de alcançá-los.” (15 de julho de 1944).

Discorrendo sobre seus estudos, até sobre o Brasil ela falou:

Depois li sobre o Brasil: o tabaco da Bahia, a abundância de café, o milhão e meio de habitantes do Rio de Janeiro, Pernambuco e São Paulo, o rio Amazonas.”

Anne tinha apenas 15 anos de idade quando faleceu, entre fevereiro e março de 1945.

Poucos dias após, em 15 de abril de 1945, o campo de concentração foi libertado pelas tropas soviéticas. Apenas o pai de Anne, Oto, conseguiu sobreviver.

Sobreviveu, também, o “Diário”, com a empatia e talento de Anne Frank, a nos cativar até os dias de hoje, com a emoção transmitida por alguém que apesar de toda a tragédia que a cercava, e de sua pouca idade, soube transmitir palavras de esperança e fé na humanidade. Anne Frank se foi prematuramente, mas deixou sua contribuição na história da sensibilidade humana.

* Belmires Soles Ribeiro – Procurador de Justiça no Mato Grosso do Sul/MS.

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