Dilemas: telas, livros ou multiplataformas?

Foto por Ron Lach em Pexels.com

A discussão no meio educacional e nas famílias, os estudos científicos e as desconfianças sobre o uso excessivo das tecnologias digitais acompanharam o crescimento do uso de aparelhos como celulares, tablets, computadores e livros digitais – em casa, na escola e em praticamente todos os ambientes de convívio social nas duas últimas décadas. É um tema sensível, sem solução imediata e que preocupa cada vez mais os especialistas e a sociedade como um todo. Vivemos dilemas que se avolumam a cada avanço apresentado, incluindo agora os softwares e aparelhos que usam o que se convencionou chamar de ‘inteligência artificial’, dentre outras inovações.

Basta colocar o pé fora de casa e nos deparamos com milhares de pessoas portando seus telefones, seja nas mãos ou nos bolsos e bolsas – os nossos incluídos. Entramos em qualquer loja, empresa, repartição pública, comércio etc e lá estará alguém diante de um computador ou notebook, acrescido o telefone celular num cantinho qualquer, sempre à vista do seu dono ou dona. As atividades profissionais, educacionais, de pesquisa, comunicação, inteligência, vendas, comércio, exportação, finanças ou controle de produtos estão interligadas – dependentes ou interdependentes – das redes de computadores. Ou seja, tirando as profissões estritamente ligadas ao dito mundo ‘braçal’, nossos olhos, mãos e dedos estão amarrados ao universo digital. Até mesmo esse estrato de trabalhadores e trabalhadoras, em seu horário de almoço ou descanso, está condicionado aos celulares e notebooks. A pergunta é: quem não depende das telas atualmente?

Transpondo isso para o mundo infantil e dos adolescentes, os estudos se alargam cada vez mais para tentar compreender e separar os benefícios e malefícios da exposição crescente às telas em determinadas faixas de idade. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) tem pesquisas e até mesmo uma cartilha que busca servir de orientação aos pais e responsáveis nesse campo. Esse estudo da SBP abarca temas como questões legais, dados, orientações sobre desenvolvimento cerebral e mental, além de demonstrar questões que envolvem problemas médicos acerca do uso abusivo de telas pelas crianças e adolescentes (veja a cartilha aqui).

Vivemos em um mundo hiperconectado, todos sabemos. Chamam esse processo também de “mundo multiplataformas”, o que seria uma definição mais ampla, embora sempre passível de discussão e polêmicas. Afinal, as maneiras como nos comunicamos passam, ao longo de um dia, por diferentes universos – em geral oriundos das tecnologias informacionais – ‘que se falam entre si’ – e dão a impressão de uma unidade necessária para que consigamos entender as mensagens que nos chegam aos montes, a toda hora, por diversificados meios. Aqui entram as ‘redes sociais’, aplicativos de trocas de mensagens e todos aqueles que usam áudio, vídeo, imagens, textos, recortes, trechos, reportagens ou conexões com rádios, tevês e outras mídias.

A magia da tecnologia traz em sua origem algo contraditório: gera curiosidade, encantamento, prende e gera algum tipo de dependência. Muita gente não consegue ficar desconectado por alguns minutos, que dirá algumas horas do seu dia. E isso se reflete em comportamentos coletivos que, em vários lugares, provocam tumultos, confusões e reações em cadeia a cada pane que esses equipamentos ou aplicativos apresentam, especialmente no campo das finanças, em particular com os bancos.

Voltando ao mundo da infância e adolescência para cruzar isso com a questão educacional, é possível recordar como a ‘informatização das escolas” foi apresentada como a solução mágica para todos os problemas em sala de aula. Eu estava em pleno exercício do magistério, ainda na primeira metade dos anos 2000, quando as salas de informática viraram praticamente uma necessidade. Se apostava que isso facilitaria tudo, tiraria o ensino da “idade da pedra” e faria com que professores, alunos, pais e outros envolvidos no processo educativo se beneficiassem. De fato, isso ocorreu, embora em parte, pois como tudo que se apresenta como “solução definitiva”, pode acabar se esgotando.

Na minha humilde avaliação, o uso dos computadores nas unidades escolares carecerem de um projeto integrado, de longa duração, que se modificaria ao longo do tempo, tentando acompanhar as tendências e inovações desse campo. Ademais, não poderia ir muito longe se fosse desvinculado de outras plataformas, inclusive daquelas tradicionais. As Salas de Leitura, por exemplo, são ambientes em que muito do que se pode extrair do universo digital pode ser aproveitado ali, realizando conexões com o mundo dos livros impressos ou suas versões digitais. A contação de histórias, atividade lúdica de primeira grandeza na primeira infância e nas séries iniciais do ensino, é um instrumento que pode utilizar as chamadas multiplataformas, sem abrir mão do professor ou professora com seu estilo próprio e sua capacidade de transmissão das histórias que estão nos livros, na mente ou no imaginário das crianças, ou mesmo que venham da TV, do celular ou do tablet, isto é, das “multiplataformas” de informação, diversão ou de comunicação.

E o tempo de uso e exposição das crianças e adolescentes a esses mecanismos? Pois bem, como pregam os especialistas (e o material da SBP que está disponível é muito bom!), a saída é algo que se constrói em cada família, em cada ambiente escolar ou de convivência. No mais, o consenso é que existe um uso excessivo das telas por todos nós, inclusive agora ao escrever este texto (e você ao ler e descer e subir a tela). Reduzir, voltar a usar métodos tradicionais de leitura de livros e ficar algumas horas do dia sem se expor às telas é um bom começo para todo mundo, especialmente para quem está em estágios de desenvolvimento cerebral e cognitivo, no caso as crianças e adolescentes.

A propósito, é bom lembrar de ações práticas adotadas por governos e instituições de educação em diversos países do mundo nesse campo, notadamente aqueles considerados mais avançados em seus sistemas educacionais, como é o caso da Finlândia, da Holanda, da França e da Suécia. Foram esses países que, recentemente, começaram a puxar o freio de mão no uso excessivo das tecnologias digitais em salas de aula. Se você não leu, disponibilizo aqui o link de matéria da BBC Brasil sobre a atitude – considerado por muitos radical – de governos da Finlândia, da França e da Holanda, que simplesmente “baniram” os celulares das mãos dos estudantes em horário escolar (veja aqui a reportagem). A Suécia vai no mesmo caminho: ordenou a volta dos livros impressos para os pequenso e em outros estágios educacionais. Esse bloco de países está disposto a rever mecanismos digitais em sala e anuncia a volta dos livros impressos nas mãos dos estudantes.

Por fim, como usuário de multiplataformas e apaixonado por livros impressos, tenho falado há algum tempo sobre isso em outras redes, em conversas com amigos, professores, colegas, familiares e pessoas que gostam de discutir temáticas ligadas à Educação: sou defensor incondicional da “experiência tátil”. Pegar, folhear, abrir um livro, sentir seu cheiro. O mesmo com revistas de informação ou quadrinhos. Entendo que não se deveria privar as novas gerações dessa experiência. Faz bem, melhora a percepção sobre o que se vai ler. E cria um conexão incrível. Só experimentando para ver.

Ah, e isso não significa abandonar ou correr com medo dos computadores, tablets ou celulares: usar bem, com parcimônia e sempre como suporte, mecanismo de ampliação e de busca para algo que possa mostrar aspectos ainda mais relevantes do campo do conhecimento. Ou da diversão. Não importa. E o cinema, as músicas e filmes via plataformas digitais, dentro dos limites que não nos tirem a liberdade de ser quem somos, tudo isso se soma ao prazer da leitura tradicional. De ler, contar, recontar, ouvir a história. E reescrever, publicar ou modificar aquilo que se viu nas demais plataformas. Essa, talvez, seja uma busca que pode resultar em um caminho melhor para sairmos dessas ciladas que construímos coletivamente nas últimas décadas.

E os dilemas podem ter seu fim se buscarmos soluções integradas. Porque os problemas são complexos e exigem tempo, paciência, estudos científicos e muita disposição para mudar. Ou ficaremos na mesma, reclamando e aumentando nossa dependência digital, perdendo sono, bons momentos de convivência e criando novos problemas.

Era isso. Por enquanto!

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